Pular para o conteúdo principal

PARA QUE A AURORA POSSA CHEGAR

Tudo em nossa vida é uma questão de tempo — tudo, inclusive e principalmente o aprendizado e o amadurecimento. Há uma passagem do livro “De la estupidez a la locura” na qual Umberto Eco nos conta que, quando completou treze anos de idade, ia contando com muita alegria para todos os amigos, conhecidos e familiares que estava mais velho, e todos amavelmente o felicitavam. Chegando à Igreja, foi ter com o padre Celi e contou-lhe que estava completando anos; o padre, então, disse-lhe: “Muito bem, treze anos desperdiçados”. Isso tudo teria ocorrido em 5 de janeiro de 1945. Tais palavras causaram-lhe um forte impacto. Essa observação o fez mergulhar dentro de si mesmo e refletir, em sua meninice, sobre o que ele tinha feito de sua porca vida até ali; podemos dizer que, de certa forma, aquelas ríspidas palavras provocaram a gestação daquele que viria a ser o Umberto Eco que todos nós conhecemos. Aliás, realmente o conhecemos ou apenas e tão somente reconhecemos a sua fama, que não é pequena? Bem, deixe quieto e sigamos em frente. Provavelmente conhecemos tão bem a vida e a obra de Umberto Eco como conhecemos a nossa própria vida, mal e porcamente vivida. E esta, a nossa vida, deveria ser objeto de nossa reflexão diariamente — o que, sejamos francos, raramente o é. E não o é porque a mera possibilidade de vermos o desvelamento, diante dos olhos da nossa consciência, da verdade sobre nós mesmos, muitas e muitas vezes nos assombra. Por essa razão, preferimos a superficialidade das distrações nossas de cada dia. Por isso, mesmo com a face tocada pelas mãos de Cronos, continuamos insistentemente agindo feito crianças que, virando as costas para a realidade e para as verdades da vida, imaginam que estão fazendo com que todas elas deixem de existir. Gosto sempre de lembrar da questão que, há muito, foi levantada por Nietzsche: quanto de verdade nós somos capazes de suportar? Quanto, cara pálida? Essa é uma das poucas questões das quais, nesta vida, nós não temos o menor direito de nos esquivar porque, como todos nós sabemos, apenas a verdade — somente ela — pode nos libertar de nós mesmos. Libertar-nos das nossas mentiras, dos nossos enganos e autoenganos, de todo esse material que nós utilizamos para forjar esse trem fuçado e mal acabado que chamamos de nossa vida. Enfim, tomemos para nós as palavras ditas pelo padre Celi a Umberto Eco e reflitamos sobre este ano — e todos os anos — que foram mal vividos por nós até aqui.

*

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A QUADRATURA DO CÍRCULO VICIOSO”, entre outros livros.

https://lnk.bio/zanela 




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

COMPLEXO DE CHICÓ

Se tem um trem que as pessoas na sociedade moderna gostam de se ufanar é das suas opiniões e, quando se vangloriam disso, fazem questão de destacar que as suas opiniões sobre tudo e sobre todos não são opiniões chinfrim; nada disso, meu amigo, elas são “opiniões críticas”. Mas o que há de tão especial nisso para nos gabarmos? Como nos lembra o professor Gregório Luri, quando alguém começa a dizer que é muito crítica, a única coisa que esse abençoado está querendo dizer é que despreza e rechaça tudo aquilo que destoa dos seus pontos de vista e que irá tratar a pão de ló qualquer pataquada que esteja de acordo com tudo aquilo que ela supostamente pensa. Ui! Eu escrevi que muitas pessoas supostamente pensam? Sim. Eu queria ver — ah, como eu queria — essas mesmas alminhas críticas realizarem um inclemente exame de consciência sobre suas formosas opiniões a partir de uma questão, tão simples quanto modesta, como essa: quantas das nossas amadas e idolatradas opiniões são apenas e tão somen...

OS CRÍTICOS DO PAU OCO

Quando uma palavra passa a ser utilizada em demasia pela grande mídia e pelos autoproclamados “bem-pensantes”, é sinal de que o pobre vocábulo acabou perdendo praticamente todo o seu crédito cognitivo. Quando isso ocorre, ela passa a ser utilizada para sinalizar qualquer coisa e, por isso mesmo, termina significando coisa alguma. E isso, cara pálida, é uma tremenda enrascada porque abre as porteiras da vida para toda ordem de barbaridades. Um bom exemplo disso são os usos e abusos da palavra “crítico”. É educação crítica para cá, é opinião crítica para lá, pensamento crítico acolá; enfim, é um Deus nos acuda porque a única coisa que se faz presente em meio a tanta pretensa criticidade é o espírito de rebanho que, por sua própria natureza, sufoca qualquer possibilidade de uma opinião serena, de um pensamento independente e de uma educação emancipatória. Mas é claro que nós não iremos vestir, jamais, essa carapuça porque, “sacumé”, nós somos “críticos de fato”, não apenas de nome, como...

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #026

Tal como a um falsário que cunha moedas falsas, os indivíduos com a alma embebida no cientificismo não se cansam de nos propor uma falsa imagem do ser. # Nascemos no tempo, mas não encontramos a nossa medida e razão de ser no tempo. # A cultura é o espelho amplificador da nossa vida espiritual. # Amizade é destino. Amigo não se escolhe, encontra-se. # Um escritor é o professor do seu povo, como nos ensina Soljenítsin e, por isso, um grande escritor é, por assim dizer, um segundo governo. Eis aí a razão por que nenhum governo, em parte alguma, ama os grandes escritores, só os menorzinhos. # Todo ser humano, em alguma medida, é feito de um sutil contraste de luz e sombra. # Quem tem amor no coração sempre tem algo para oferecer. Quem tem tudo, menos amor no coração, sempre sente falta de algo, de muita coisa; só não sabe dizer do quê. * Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. http...