Pular para o conteúdo principal

UMA ADOLESCÊNCIA SEM FIM

Artigo escrevinhado e publicado em 08 de julho de 2003, com o título “A CONDIÇÃO HUMANA – PARTE I”.

 

Feliz é ser humano; infeliz é a sua condição. Ou seria: infeliz é o ser humano e feliz a sua condição? Somos realmente muito semelhantes àquelas equações matemáticas confusas, com pretensão de grandeza, a querer explicar o universo — sem, muitas vezes, nos darmos conta de que não passamos de alguns sinais de tinta numa folha de papel.

 

Não consigo, neste momento, pensar noutra imagem que melhor possa exemplificar a derradeira condição humana senão a cena do filme O Gladiador, onde o senhor dos gladiadores — proprietário de Quinto Máximo — está com o rosto voltado para o horizonte, olhar sereno, empunhando a espada de madeira que Marco Aurélio lhe oferecera como símbolo de sua nova condição: a liberdade. E, com esse semblante tranquilo, quando os centuriões romanos invadem a sua alcova, diz com calma, num tom de poeta guerreiro: “...apenas pó e sombras.” Lição essa que nos é sempre relembrada na Missa de Quarta-feira de Cinzas e que, mais depressa do que julgamos, fazemos questão de esquecer.

 

Um dos grandes males que afetam a sociedade moderna não é essa condição que nos é inerente, mas sim o seu quase total esquecimento. E, quando denunciada, procura-se negá-la através de uma autoafirmação obtusa, quase onipotente, de uma suposta perfeição. No século XX, transformamos radicalmente a nossa percepção da realidade — e de nós mesmos. Degradámos os olhos da carne e da alma diante da confusão que criamos ao confundirmos meras impressões com dados e fatos palpáveis.

 

Passamos a maior parte dos nossos dias imersos numa pororoca de sonhos e devaneios — e a isso chamamos realidade. A condição humana poderia resumir-se numa dura ilusão, embalada pela última balada das paradas, ornada com pinturas surreais sobre um fundo gótico. Nada com muito sentido. Vago, na verdade, como a condição da humanidade na sua adolescência sem fim.

 

*

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A QUADRATURA DO CÍRCULO VICIOSO”, entre outros livros.

https://lnk.bio/zanela


 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #026

Tal como a um falsário que cunha moedas falsas, os indivíduos com a alma embebida no cientificismo não se cansam de nos propor uma falsa imagem do ser. # Nascemos no tempo, mas não encontramos a nossa medida e razão de ser no tempo. # A cultura é o espelho amplificador da nossa vida espiritual. # Amizade é destino. Amigo não se escolhe, encontra-se. # Um escritor é o professor do seu povo, como nos ensina Soljenítsin e, por isso, um grande escritor é, por assim dizer, um segundo governo. Eis aí a razão por que nenhum governo, em parte alguma, ama os grandes escritores, só os menorzinhos. # Todo ser humano, em alguma medida, é feito de um sutil contraste de luz e sombra. # Quem tem amor no coração sempre tem algo para oferecer. Quem tem tudo, menos amor no coração, sempre sente falta de algo, de muita coisa; só não sabe dizer do quê. * Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. http...

COMPLEXO DE CHICÓ

Se tem um trem que as pessoas na sociedade moderna gostam de se ufanar é das suas opiniões e, quando se vangloriam disso, fazem questão de destacar que as suas opiniões sobre tudo e sobre todos não são opiniões chinfrim; nada disso, meu amigo, elas são “opiniões críticas”. Mas o que há de tão especial nisso para nos gabarmos? Como nos lembra o professor Gregório Luri, quando alguém começa a dizer que é muito crítica, a única coisa que esse abençoado está querendo dizer é que despreza e rechaça tudo aquilo que destoa dos seus pontos de vista e que irá tratar a pão de ló qualquer pataquada que esteja de acordo com tudo aquilo que ela supostamente pensa. Ui! Eu escrevi que muitas pessoas supostamente pensam? Sim. Eu queria ver — ah, como eu queria — essas mesmas alminhas críticas realizarem um inclemente exame de consciência sobre suas formosas opiniões a partir de uma questão, tão simples quanto modesta, como essa: quantas das nossas amadas e idolatradas opiniões são apenas e tão somen...

COM QUANTAS VIRTUDES SE FAZ UM HERÓI?

Todo herói, por sua própria natureza, é uma figura controversa, e o é por inúmeras razões. De todas as razões, há duas que, no meu entender, seriam intrínsecas à condição de personagem notável. A primeira refere-se à própria condição humana. Todos nós, sem exceção, somos contraditórios, motivados muitas e muitas vezes por desejos conflitantes, impulsos desordenados, paixões avassaladoras, e por aí seguimos em nosso passo demasiadamente humano. E os heróis, humanos que são, nesse quesito não diferem de nós. O que os distingue de nós é a forma como eles lidam com os seus conflitos internos e com sua natureza desordenada. A segunda seria o fato de que a forma como um personagem elevado à condição de herói é apresentado à sociedade. Dito de outra forma, de um modo geral, todos os heróis acabam refletindo os valores e ideias do tempo presente, daqueles que o reverenciam, não necessariamente as ideias e valores que eram, de fato, defendidos por ele quando estava realizando a sua jornada po...