Há uma historieta muito bonita que se
encontra presente nas páginas da obra “O livro dos abraços” de Eduardo Galeano.
A referida história é mais ou menos assim: havia um garoto chamado Diego, que
não conhecia a imensidão do mar. Seu pai, um tal de Santiago, levou o
menino para o sul para apresentar as águas do imenso azul.
Chegaram ao seu destino depois de uma longa viagem, porém, de
onde eles estavam não dava para ver nem a praia, nem o mar, não dava pra ver nada, pois existiam
imensas dunas que separavam eles da visão da vastidão do reino de Netuno. Logo,
colocaram-se para caminhar e começaram a escalar os colossos de areia, até que
chegaram ao topo e, pai e filho, toparam, lá do alto, com a visão daquele azul
sem fim.
O menino, tadinho, ficou sem palavras,
com cara de besta, mudo diante de toda aquela boniteza, até que, finalmente, meio trêmulo, gaguejando, disse ao pai: “me ajuda a olhar”.
Me ajuda a olhar. Essas são as
palavras de uma alma inundada de humildade que se vê tomada pelo assombro ao
ter conhecido, por ter testemunhado, algo que é imensuravelmente maior, mais
amplo, belo e profundo do que tudo o que seus olhos de criança até então tinham conhecido.
De uma forma muito singela, o escritor
uruguaio nos deu um exemplo daquilo que Aristóteles ensina-nos sobre o ato de
conhecer, que ele começa sempre com um espanto, com a admiração sincera e escancarada diante da
realidade que se apresenta a nós. E esta, a admiração, para poder se fazer
presente em nosso coração, precisa encontrar em nossa alma a virtude da
humildade e da gratidão para que possamos dilatar os umbrais do nosso
entendimento e, deste modo, podermos abarcar verdades até então desconhecidas
por nós e, dessa maneira, abarcando-as, crescermos com o conhecimento delas.
Ou, como diziam os escolásticos, quanto mais eu procuro saber, mais eu sou.
A humildade nos faz perceber a beleza
e a grandeza que se fazem presente em tudo e em todos e, a gratidão, incita-nos
a sermos reverentes diante de tudo aquilo que aquilata nossa alma e eleva nosso
ser.
E é por essa razão que o reino dos
céus, onde a verdade derrama o esplendor de sua majestade, não é dos
adolescentes, nem dos jovens e muito menos dos adultos. Ele é dos pequeninos,
daqueles que têm o coração humilde e grato de uma pequena criancinha que ainda
não perdeu a sua capacidade de se espantar, de se encantar com as pequenas
coisas que agigantam o nosso olhar sobre a vida.
Em se falando nisso, veio do fundo da minha caótica memória, algumas palavras que, certa feita, havia colhido numa das
obras de G. K. Chesterton, onde o mesmo nos lembra que para impressionarmos um
adulto, ao abrirmos uma porta, deveríamos mostrar a ele um show de luzes com a aparição de um dragão
dourado e uma fênix flamejante, ou qualquer coisa similar. Agora, para fazermos
os olhinhos de uma criança brilharem, bastaria apenas que abríssemos uma porta
porque, ao contrário de nós, que apenas nos encantamos com aquilo que
soberbamente cultivamos em nossa adoentada imaginação, os pequeninos são capazes de reconhecer a nobreza que se faz presente na realidade e permitem que essa inunde os seus
corações e fertilize a inteligência e a imaginação deles.
A primeira vez que li isso, pensei:
nessa Chesterton resvalou no quiabo. Só pode. Não tem lesco-lesco. Passado um
tempo, estava eu, casqueando minhas unhas e aí, minha filha, ainda pequena,
perguntou: “pai, o que é isso aí”? Disse que era apenas um cortador de unhas e,
lentamente, fui fechando ele diante dos seus olhos. Ao fechá-lo totalmente, ela suspirou,
arregalou os olhinhos e disse, espantada: “Uau”! É. Na mesma hora lembrei das
palavras dele, do velho Chesterton. Para variar, ele estava certo.
Hoje, somos desde tenra idade
saturados com estímulos sensoriais de toda ordem, estímulos esses que vão
avacalhando com nossa capacidade de nos espantar, pois vamos colocando toda a
nossa atenção na direção apontada para as novidades, ao invés de nos
concentrar naquilo que elas poderiam estar nos apresentado. E aí, ficamos
ansiosos pela próxima novidade que poderá nos ser apresentada, e pela próxima,
e a próxima, e assim por diante.
E isso nos esvazia. Nos esvazia de tal
forma que chega um momento em que nossa atenção não mais é capaz de centrar-se
em nada, porque ficamos apenas [perenemente] ansiosos. E põem ansiosos nisso. E
por ficarmos sempre, sem nos darmos conta, esperando pelo próximo estímulo que
irá excitar os nossos sentidos, sem nada agregar de significativo em nossa
vida, vamos perdendo a nossa capacidade de concentração, de apreensão, de compreensão e,
consequentemente, terminamos nos perdendo de nós mesmos.
Por certo, todos os idólatras das
novas tecnologias, e da sua virtual contribuição para o aprimoramento da
educação, irão dizer em alto e bom tom, e sem a menor modéstia, que nunca na
história da humanidade as pessoas tiveram acesso a tanta informação. Sim, isso
é verdade, porém, como muito bem pontua o historiador Peter Burke,
coletivamente, de fato, a humanidade de hoje sabe muito mais do que a de
antanho, porém, individualmente, sabemos muito menos que nossos ancestrais e
isso, qualquer um que tenha dois olhos, e que não tenha medo de usá-los sem um
filtro tela, é capaz de constatar.
Provavelmente, se o garoto Diego, da
historieta de Eduardo Galeano, fosse nosso contemporâneo, quando estivesse
diante do mar, do alto de uma duna, não levantaria os seus olhos da tela que
sequestrou sua atenção e, se levantasse, diria: “Ah! Tá bom. Vamos pra casa
agora?” Ou, talvez, Santiago nem o levaria para uma viagem para ele conhecer o mar
porque, no seu entender, o garoto já teria visto algumas imagens do mar pela
televisão, e outras tantas em seu celular, pois considera que a visualização de um vídeo e
o estar presente diante da vastidão azul, seriam experiências equivalentes e, por
isso, não julgaria que a viagem seria algo realmente necessária.
Infelizmente, cada vez mais perdemos a
capacidade de nos espantar, a cada dia que passa temos mais e mais dificuldades
para nos admirar diante da beleza da verdade e da majestade da realidade e, por
não mais conseguirmos amorosamente contemplar o que está para além das palavras
e das imagens, vamos extirpando em nós uma fatia significativa de tudo aquilo
que nos aprimora e, principalmente, que nos defende contra a nossa
bestialização que hoje impera entre nós e em nós.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva
Zanela
https://sites.google.com/view/zanela
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