Pular para o conteúdo principal

CORAÇÕES E MENTES MUTILADOS # 008

 

Sem uma boa dose de paciência, e uma boa porção de persistência, não realizamos nada que preste nessa vida. Nadica de nada. Essa é uma das muitas lições preciosas que vemos presentes nos episódios da série animada “Naruto”.

 

Dedicação, esforço, resiliência, enfim, as lições virtuosas que se apresentam em cada um dos episódios, e na vida de cada uma das personagens, são preciosidades que, por inúmeras razões inconfessáveis, são desdenhadas soberbamente por nós.

 

Falando-se em Naruto, lembrei, não sei por qual razão, de um escritor que gosto pra caramba: o portuga Lobo Antunes. Essa fera das letras afirma, de forma lacônica, que escrever não é difícil. Na verdade, segundo ele, seria tremendamente fácil fazer um lápis bailar sobre uma página em branco. O que realmente seria um tormento, algo que sugaria todas as nossas energias, e exige uma baita dose de perseverança e de resignação, é o trabalho de revisão. Esse sim, segundo ele, é de matar.

 

E não adianta reinar feito um Ford velho não, porque, são nos pequenos detalhes que o diabo se esconde, da mesma forma que são nos acabamentos que a maestria se revela. É assim mesmo e não adianta pedir desconto.

 

Tal observação, feita por esse grande esgrimista intelectual, é válida não apenas para a escrita, mas para todas as atividades humanas. Tudo, para ser bem feito, exige dedicação e, entendamos claramente que dedicação, nesta e em qualquer seara, significa predisposição para refazermos o que imaginávamos já estar pronto e acabado, quantas vezes for necessário, até atingirmos, mesmo que minimamente, aquilo que havíamos idealizado inicialmente.

 

Quando deitamos nossas vistas nas páginas que nos contam um cadinho a respeito da vida dos grandes mestres - de todas as artes - que povoam a história da humanidade, não vemos nenhum deles que dizia, para si mesmo, que pretendia fazer um trabalho “mais ou menos”, ou que almejava realizar uma tarefa “do jeito que der”, ou que iria entregar tudo que tem para ser entregue “assim mesmo, nas coxas”. Não. Os olhos deles estavam voltados para outra direção, para horizontes mais elevados e límpidos.

 

A direção para qual nosso olhar se volta, seja para “o mundo da vida vivida na base da gambiarra”, seja para “o universo das realizações bem acabadas”, depende, necessariamente, do quanto nós exigimos de nós mesmos e, é claro, do quanto nós esperamos que os outros façam por nós o que é de nossa total responsabilidade. É bem aí que mora a encrenca toda.

 

Se nós nos habituamos a almejar sempre a superação em nossas realizações, tornar-se-á claro que o normal não é nos satisfazermos com o mero “fazer por fazer”, mas sim, o procurar “fazer o melhor possível”, principalmente quando isso parece ser impossível aos olhos dos outros.

 

Detalhe importante que não pode ser esquecido: melhorar sempre é possível quando essa possibilidade depende do nosso esforço. E aprender qualquer coisa depende, fundamentalmente, da nossa vontade, do quanto realmente queremos aprender.

 

De um modo geral, quando estamos aprendendo algo novo, é natural que não assimilemos, de cara, a lição ensinada com a perfeição minimamente exigida e, por isso, é imprescindível que sejamos corrigidos, orientados e, se necessário for, admoestados, para deixarmos de ser soberbos e, com docilidade, realizarmos a lição de forma reta. É fundamental, como nos ensina Hugo de São Vitor, que sejamos humildes para que deixemos de ser medíocres.

 

E é dessa maneira que nós dilatamos nosso horizonte de compreensão, ampliamos o nosso vértice de realização e aumentamos o nosso círculo de ação e, tudo isso, apenas é possível, se aprendemos a ser pacientes e perseverantes em tudo o que fazemos.

 

Mas como poderemos ensinar uma e outra virtude se no mundo atual ouvimos em todas as latitudes e longitudes que tudo é relativo e, por isso, tudo deveria ser tido na conta de aceitável? Ora, a consequência lógica da relativização de todos os valores, e de todos os bens que os comunicam, é isso mesmo, não tem choro, nem vela. Se tudo é relativizável, qualquer coisa acabará sendo aceitável, mesmo que seja um tremendo absurdo. E se não gostarmos disso, em dois palitinhos seremos rotulados de retrógrados, preconceituosos, ou de algum trambolho similar.

 

Ora, meu caro Watson, quando não existe a possibilidade de sermos advertidos com uma reprovação para, noutra ocasião, termos a oportunidade de refazermos o caminho que foi tergiversado por nós, o que se está dizendo é que a correção realizada pelo mestre não deve ser levada a sério e que, nessas terras de Pindorama, tudo tem o seu valor supremo, mesmo que seja algo que, no fundo, não tenha valor nenhum, pois, se tudo é relativo, a reprovação não tem sentido. Nem a reprovação, nem o que é ensinado.

 

Se o escritor português Lobo Antunes forjasse sua arte tendo como métrica esse critério torto, com toda certeza ele jamais se entregaria ao trabalho soturno de realizar a revisão, da revisão, da revisão do texto, mas também, ele não seria Lobo Antunes. Da mesma forma que Naruto jamais seria quem ele se tornou sem a sua ranheta perseverança e, é claro, sem a sua paciência relutante.

 

Quando aceitamos toda essa conversa fiada parida por essa esparrela pedagógica que infesta a décadas e educação brasileira, e que nos leva, das formas mais canhestras, a justificar os frutos da desídia cognitiva como se esses fossem apenas o produto mal compreendido de “formas diferentes de aprender”, nós estamos, sem querer querendo, sendo coniventes com a desfiguração do bem mais precioso que temos: nosso caráter, nossa personalidade, nossa inteligência, nós mesmos.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

https://linktr.ee/dartagnanzanela


Inscreva-se [aqui] para receber nossas notificações.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A GRANDE LIÇÃO ENSINADA PELOS PEQUENINOS

Gosto de me reclinar no sofá, ficar olhando para o nada e nada fazer, nada pensar. Quando faço isso, ouço o som de passos miúdos vindo em minha direção e, do nada, eis que um serzinho atira-se sobre mim, cheira-me obsessivamente, reclina-se no meu colo e acomoda o seu queixo sobre o braço da poltrona. Esse era o Aang. Não o avatar, o último dominador do ar, do desenho animado. Era apenas o nosso cão. Quando fomos pegá-lo, ainda filhotinho, havia uma ninhada. Minha filha ficou encantada. Queria todos, mas, por certo e por óbvio, não tinha como. Aí, um deles, todo branquinho, com algumas manchas marrons, veio na sua direção. Ela estava sentada sobre os seus calcanhares; ele se aproximou e pôs-se a lamber a sua mão. Seus olhos cintilavam. “É esse! É esse! Ele me escolheu!” E sentenciou: “Você vai se chamar Aang”. E assim foi. As travessuras e estripulias que esse doguinho aprontava desde que chegou não estão no gibi. Se fosse contá-las, uma por uma, essa crônica não terminaria tão cedo. E...

AS MÁSCARAS DOS VELHOS CARNAVAIS

O escritor argentino Ernesto Sábato, em seu livro “Heterodoxia”, dizia que falar mal da filosofia é, inevitavelmente, também fazer filosofia. Mas má filosofia. Também podemos afirmar que ficar tecendo mil e um elogios à filosofia, e à vida intelectual, não é, nem de longe, uma atitude digna de um postulante a filósofo.   Esses dois personagens, de certa forma, são figuras típicas do nosso tempo, onde todos nós vivemos atolados até os gorgomilos com informações de toda ordem e dos mais variados níveis de credibilidade e valia.   O primeiro, de um modo geral, se ufana de ser uma pessoa prática, formatada pela rotina, devidamente esquadrinhada pelas expectativas que são apresentadas pela sociedade e estimuladas pela grande mídia e pelos círculos de escarnecedores digitais.   O segundo, por sua vez, é muitíssimo semelhante ao primeiro, porém, não quer, de jeito-maneira, se sentir semelhante a ele. Nada disso. O abençoado quer parecer melhor, sem o sê-lo; quer porque quer exal...

A VIDA COMO ELA É

Todos queixam-se que a vida está acelerada. Todo santo dia é a mesma coisa, aquela correria que invade a olhar sem pedir licença, acomodando-se em nossa alma sem a menor cerimônia.   Os dias voam, mesmo não tendo asas. As horas se dissipam feito fumaça de cigarro, levando os momentos que dão forma, cor e sentido à nossa jornada por esse vale de lágrimas.   E o trem descamba de vez quando nos aproximamos dos dias em que as cortinas, de mais um ano que se despede, se fecham, sem deixar ao menos um bilhetinho de despedida sobre a mesa.   Nestes dias, o coração bate mais forte, o suor corre num passo frio pelos sulcos rasos do nosso rosto, desejoso de tornar-se um caudaloso rio.   E nesse açodamento de querer fazer não-sei-quê que toma conta do nosso ser, acabamos ficando indiferentes ao amor, insensíveis a dor dos nossos semelhantes, apáticos diante da realidade que invade nossa vista, impassíveis perante a nossa própria humanidade, indolentes diante da majestade de Deu...