Chico Anísio, em um dos contos do seu livro “A curva do Colombo”, nos chama a atenção para um sujeito, prestes a comemorar seu aniversário de 56 anos, sujeito esse que malandramente deixava a vida passar, curtindo-a adoidado, ao mesmo tempo em que, sem dó, enrolava os seus pais. Enrolava e dizia: “mama, a vida é para se viver”. A vida é para ser aproveitada ao máximo, em cada um dos seus momentos, em cada segundo do tempo que temos.
Pois é. Pensando assim, dá-se a impressão de que tudo é uma questão de tempo. Na verdade, na grande maioria das vezes o pomo da discórdia não seria o tempo, mas sim, a falta dele. Ao menos, essa é a história que é frequentemente contada por nós para justificar a não realização dos inúmeros planos e sonhos que [supostamente] temos, ou da não realização das mais comezinhas obrigações diárias.
Seja como for, a “falta de tempo” está na boca do povo, nos lábios de todos.
Mas e se nós passássemos a ter tempo, tempo à rodo, pra dar e vender, conseguiríamos realizar todos os nossos planos mirabolantes e cumprir cada um dos pormenores das nossas obrigações diárias? É óbvio que não. Se tivéssemos todo o tempo do mundo, para fazermos com ele o que bem entendêssemos, continuaríamos com a mesma lengalenga.
E continuaríamos nessa toada porque não é o tempo que é escasso, é a forma como utilizamos ele, a maneira como o empregamos.
No fundo, o que nos falta não é tempo, é empenho em fazer algo que realmente seja significativo em nossa vida e, principalmente, falta-nos comprometimento em vivermos uma vida autêntica, que permita que nossa alma seja inundada de sentido.
Nietzsche, o bigodudo filósofo, em seu livro “Schopenhauer como educador”, diz-nos, de forma cáustica, que o ser humano seria, antes de qualquer coisa, um bichinho preguiçoso, que procura sempre evitar todo e qualquer aborrecimento. E, inevitavelmente, quando nos empenhamos a não mais viver os dias da nossa vida como um autômato, quando passamos a nos esforçar para cultivar e preservar em nosso íntimo um espaço autônomo, um jardim com todas as nossas flores, acabamos por encontrar pencas de amolações.
Não me refiro, aqui, a possíveis zangas com a sociedade, com o sistema, com o raio que o parta. Refiro-me, sim, com os aporrinhamentos que possivelmente serão apresentados a nós por nós mesmos, devido a essa intratável preguiça ontológica que se encontra aninhada nas mais profundas entranhas do nosso ser.
Diante dessa mácula que há em nossa alma, que não tem como ocultar, o filósofo Jackson de Figueiredo nos lembrava, de forma lacônica, que a nossa porca vida é uma oportunidade única para nos prepararmos para a eternidade. Cada momento, bem ou mal vivido, inevitavelmente ecoará para além dos umbrais do tempo.
Por isso que a vida deve, como nos lembra a personagem de Chico Anísio, ser bem vivida; e é bem aí, nesse ponto, que o caldo entorna.
Afinal de contas, em que consiste esse tal de “bem viver”? Seria dar trela a todos os siricuticos que nos desassossegam? Seria viver cada dia como se não houvesse amanhã? Seria, por acaso, obedecer caninamente uma rotina que nos é ditada pela sociedade para, no frigir dos ovos, não nos aborrecermos com nada? Ou seria nos empenhar para sermos, a cada dia, alguém mais próximo de quem nós deveríamos ser?
Bem, tudo depende daquilo que entendemos por viver; depende da profundidade com que nós compreendemos o que seja o bem; enfim, depende do quão sincero nós conseguimos ser conosco mesmo, no silêncio da nossa consciência, do fundo insubornável do nosso ser.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A QUADRATURA DO CÍRCULO VICIOSO”, entre outros livros.
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