Pular para o conteúdo principal

BUKOWSKI DIANTE DAS AREIAS DO TEMPO

O filósofo argentino José Ingenieros, em seu livro “Las fuerzas morales”, nos lembra que cada época tem que lutar para reconquistar a história. As pessoas de todos os tempos, dentro de suas circunstâncias, devem esforçar-se nessa empreitada.


O conhecimento, por sua natureza, encontra-se espalhado pela sociedade, em repouso sobre incontáveis fragmentos, como se fosse um oceano de areia diante do horizonte da existência e, cada geração, deve procurar reconstruir, com as areias do tempo, o palácio da memória, o templo da história porque, sempre, cedo ou tarde, vem a roda-viva e sopra novas circunstâncias em nossa vida mal vivida, que vão erodindo todo o trabalho que foi realizado por nós e pelas gerações que nos antecederam.


A cada nova circunstância que se apresenta, é necessário que procuremos atualizar a nossa visão do passado, para que possamos melhor compreender o momento presente e, principalmente, a nós mesmos. Nesse sentido, podemos afirmar, sem medo de errar, que a história é sempre reescrita. Sempre.


É importante lembrarmos que reescrever a história não significa, de jeito-maneira, esculachar os historiadores de antanho, supostamente desmentindo-os, muito menos fantasiar uma nova narrativa a respeito do caminho que foi percorrido pelos nossos antepassados. Nada disso cara pálida. Reescrever a história é o ato de aprofundar, com esmero, o que nos foi legado pelos estudos realizados pelos historiadores das gerações anteriores, corrigindo os erros e equívocos que porventura eles tenham cometido para, deste modo, darmos uma modesta contribuição nessa obra de perene construção que é o desvelamento da verdade.


Nesse sentido, todo sujeito que vem com aquela conversa azeda de que tudo o que até então foi ensinado a respeito de algo é mentira e que ele, elezinho, vai apresentar para todos a verdade que foi até então escondida, na real, esse tipo de caboclo não sabe o que é história, ignora por completo o que seja a verdade e, obviamente, não compreende a problemática e conflituosa relação que existe entre o conhecimento da verdade e a construção do conhecimento histórico (que, aliás, é um trem pra lá de divertido).


Além disso, quando nos portamos desse modo, estamos a transparecer toda a soberba que envenenou a nossa minguada inteligência e envaideceu o nosso limitado olhar e isso, frequentemente acontece, quando desistimos de querer compreender a vida à luz da história, para querermos enquadrar a história no molde torto de uma ideologia qualquer.


Se procedermos dessa maneira enviesada, não estaremos a reescrever a história a partir das circunstâncias presentes; estaremos sim, a reeditar o passado para que aponte para o fim último que é indicado pela ideologia na qual depositamos nossas esfarrapadas esperanças, ideologia a qual colocamos indevidamente no lugar da busca amorosa e abnegada pelo conhecimento da verdade.


Se seguirmos por essa vereda, a história acabará por ser reduzida à feição de um ídolo sem vida que, no máximo, servirá apenas para justificar nossos disparates apoquentados do momento.


Para realizarmos essa tarefa, de reconquistar o passado, de forma diligente, é preciso que nos refugiemos naquele lugar que há em nosso coração que, segundo o poeta Charles Bukowski, nunca será preenchido. É nesse jardim secreto que devemos, de tempos em tempos, refazer os castelos de areia do saber histórico, e drenar os pântanos da ignorância presunçosa, para podermos contemplar o ziguezaguear dramático da ventura e da desventura humana através do tempo.


Mas, infelizmente, nós não queremos, realmente, conhecer a musa da história, não é mesmo? Não mesmo. No fundo, o que queremos é ter apenas uma e outra informação histórica para esfregar nas ventas dos nossos adversários e desafetos para, ao final, podermos vencer os bate-bocas da vida sem, necessariamente, termos que utilizar o tal do bom senso e, muito menos, a dita-cuja da razão.


Não é à toa, nem por acaso que frequentemente, sem que percebamos, a história se repete.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros.

https://lnk.bio/zanela



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

CAMINHANDO SEM PRESSA NA CONTRAMÃO

Recentemente tive a alegria de encontrar em um Sebo o livro “Rubem Braga – um cigano fazendeiro do ar”, de Marco Antonio de Carvalho. Na ocasião, não tive como comprá-lo. Já havia fechado minha compra e, em consequência, não tinha mais nenhum tostão no bolso, por isso, deixei o baita na estante, torcendo para que ninguém o comprasse.   As semanas se passaram e lá estava eu, mais uma vez, no mesmo Sebo e, graças ao bom Deus, lá estava o bicho velho, esperando o Darta para levá-lo. Na ocasião estava indo para uma consulta médica e, enquanto aguardava, iniciei minha jornada pelas páginas da referida obra.   Rubem Braga, o homem que passava despercebido no meio da multidão, percebia tudo, tudinho, que a multidão não era capaz de constatar e de compreender. Não é à toa que ele era e é o grande mestre da crônica.   Ao indicar esse caminho, não estamos, de modo algum, querendo insultar ninguém não. O fato é que toda multidão, por definição, vê apenas e tão somente o que os mil olhos da massa

REFLEXÕES INOPORTUNAS (p. 01)

É fascinante, para não usarmos outros termos, vermos o tom moderado, e as expressões de equilibrada indignação, que são usadas por inúmeras autoridades e formadores de opinião, para justificar práticas totalitárias como sendo recursos necessários para preservar o seu projeto de poder que, no caso, eles não chamam pelo devido nome, que é tirania. Nada disso. Eles, malandramente o chamam de “democracia” e, ao fazer isso, essas figuras se acham umas gracinhas.   #   #   #   Não existe liberdade de expressão se não existir a possibilidade de nos sentirmos ofendidos com o que os outros poderão dizer a respeito de algo, de alguém ou sobre nós mesmos. Se nós não compreendemos isso é porque, bem provavelmente, nós queremos apenas e tão somente calar as vozes que discordam de nós para que possamos, “livremente”, ouvir apenas e tão somente a nossa.   #   #   #   Não chame ninguém de alienado antes de examinar o estado fragmentário em que se encontra a nossa minguada consciência. Não chame ningué