Pular para o conteúdo principal

MUITO ALÉM DA BESTIALIDADE

Em uma de suas últimas entrevistas, o historiador José Murilo de Carvalho havia afirmado que tinha perdido a esperança de que, um dia, o Brasil viria a ser uma grande nação e, nessa tertúlia, ele apresentou algumas das razões que o levaram a ter essa visão pessimista a respeito da pátria de chuteiras. Razões as quais, francamente, em muitíssimos pontos, não temos como, nem porque, discordar.

 

Além do mais, de minha parte, graças ao bom Deus, nunca tive esse tipo de esperança, de querer que o Brasil se torne uma das grandes nações do mundo. Nunca esperei, e não espero.


Espero apenas que nós, brasileiros, estejamos à altura dos desafios que se apresentam a nós, reles e anônimos cidadãos, para superá-los com magnanimidade e, se for o caso, que sejamos capazes de sucumbir com altivez estoica.

 

Uma nação, seja ela graúda ou nanica, antes de qualquer coisa, é apenas uma abstração política se não considerarmos, em primeiro lugar, os homens e mulheres, anônimos e sem grande procedência, que fazem das tripas coração para cumprir com todos os seus deveres junto à sua família, perante a sua comunidade e diante o olhar amoroso e onisciente de Deus.

 

Homens e mulheres que, diga-se de passagem, ganham o pão de cada dia com seus dias trabalhados, não com gestos vazios, acordos indecorosos e outras coisinhas desse naipe.

 

De um modo geral, esses indivíduos, portadores de CPF, certidão de nascimento e título de eleitor, não se sentem representados por aqueles que dizem representá-los e, sinceramente, acho que isso é muito bom. É bom barbaridade, porque, em grande medida, reflete o quão conservador é o caráter do brasileiro comum e, por isso mesmo, um inconfesso anarquista por temperamento. Um inofensivo anarquista, como disseram, a respeito de si mesmos, Eça de Queiroz e Carlos Heitor Cony.

 

Esse tipo de brasileiro, invisível aos olhos dos donos do poder, e que passa desapercebido diante da voracidade das multidões ideologicamente ensandecidas, costuma ser profundamente cético diante da classe política, e muitíssimo desconfiado frente as artimanhas burocráticas, que se apresentam publicitariamente bem vestidas, prometendo dias melhores para Deus e todo mundo.

 

Parêntese: em certa medida, o próprio José Murilo de Carvalho havia constatado algo próximo disso, nos idos primeira República, em seu livro “Os bestializados - o Rio de Janeiro e a República que não foi”. Aliás, um baita livro. Não deixe de ler. Fecha parêntese.

 

Podemos dizer, sem medo de errar, que para esse tipo de cidadão, as palavras que foram ditas a muito por Edmund Burke, de certa forma são um ponto luminoso de orientação, quando este havia advertido que todos os planos pomposos, pretensamente racionais, matutados por mentes pretensamente cultas, que ardem com a febre das ideologias revolucionárias, frequentemente acabam levando tudo e todos para o brejo dos grandes desastres.

 

Por temer, por ter um pé atrás diante das profecias revolucionárias, e das promessas demagógicas, que querem apresentar o Estado como uma espécie de “Mágico de Oz” - que tudo provê, e que a todos protege - esse indivíduo, conservador em seu ceticismo, acaba desenvolvendo uma certa postura anarquista, devido a sua aversão ao papo furado da classe política, como bem nos lembra o cientista político português João Pereira Coutinho.

 

Aliás, tal combinação, diga-se de passagem, é buenacha barbaridade. Isso mesmo! Nada melhor que uma boa dose de ceticismo conservador, com algumas pitadas de desconfiança anarquista, para combinar com nosso humor sofisticadamente caipira que reina no coração verde-amarelo.

 

Sim, eu sei, esse tipo incomum de cidadão não abunda em nosso país e, para ser franco, em praticamente lugar nenhum. Porém, tal tipo cívico, não é tão minguado assim não. Seu número é bem maior do que se imagina.


Na verdade, muitas pessoas sentem-se assim e veem o mundo desta maneira. Ao menos, uma vez ou outra portam-se dessa maneira, diante das maracutaias que imperam nos rincões destas terras de Pindorama.

 

Não apenas isso. Essas pessoas, de um modo geral, não querem, de jeito-maneira, construir uma grande nação e isso, meu caro Watson, como já havíamos dito, é muito bom.


Essas figurinhas desejam apenas proteger suas famílias, ser bons vizinhos, servir de modo apropriado aos membros da sua comunidade, iluminar a memória dos seus antepassados e honrar a Deus. Somente isso. E, às vezes, a grandeza mundana mais atrapalha do que ajuda na realização dessas tarefas.

 

E tem outra: tais figurinhas, que são avessas a todos os grandes figurões, não almejam trabalhar pela edificação de uma grande nação, porque sabem que tudo aquilo que tem pendores megalomaníacos, sempre termina em servidão e isso, como todos nós sabemos, não tem nada que ver com esse trem chamado carinhosamente de cidadão.


Enfim, a liberdade é, de fato, defendida com unhas e dentes, de modo silente e abnegado, somente pelo digníssimo homem comum, não pelas hostes engajadas, muito menos pelos doutos, togados e, muitíssimo menos, pelas raposas engravatadas.


É isso. Fim de causo.


Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros ebooks.

https://lnk.bio/zanela





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #009

Todo orgulhoso se borra de medo da imagem das suas incontáveis imperfeições.   #   Onde não há preferência sincera, há indiferença cínica.   #   Tudo termina tragicamente quando a paciência finda melancolicamente.   #   O impulso de querer racionalizar tudo é o maior inimigo da racionalidade e do bom senso.   #   A verdadeira história da consciência individual começa com a confissão da primeira mentira contada por nós para nós mesmos.   #   Frequentemente somos firmes por pura fraqueza e audaciosos por mera teimosia.   #   Podemos usar as novas tecnologias para sermos reduzidos a uma escravidão abjeta, ou nos servirmos delas para lutarmos para preservar a nossa liberdade interior e a nossa sanidade.   *   Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. https://l...

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #011

A vida sem momentos de recolhimento e silêncio é um convite a uma sucessão de erros.   #   Concentremo-nos no resultado que almejamos atingir, não na desculpa que iremos apresentar caso fracassemos.   #   É mais importante administrar acordos do que ficar tentando nos concentrar na criação de mecanismos para controlar as pessoas.   #   Todo escritor, ou escrevinhador, que quiser namorar a crônica deve ter o coração aberto para amar os momentos fugidios e saber amá-los.   #   Só os histéricos estão faceiros da vida na atual conjuntura em que nos encontramos.   #   Falemos apenas o necessário e o façamos apenas quando, realmente, a nossa fala for indispensável.   #   Lembremos desse velho ensinamento estoico: o que impede a ação pode sempre favorecer a ação, que aquilo que fica no meio do nosso caminho pode tornar-se o nosso caminho.   *   Escrevinhado por Dartagna...

O ABACAXI ESTÁ EM NOSSAS MÃOS

Dia desses, eu estava folheando um velho caderno de anotações, relendo alguns apontamentos feitos há muito tempo, e entre uns rabiscos aqui e uns borrões acolá, eis que me deparo com algumas observações sobre o ensaio "La misión pedagógica de José Ortega y Gasset", de Robert Corrigan. Corrigan faz algumas considerações não a respeito da obra do grande filósofo espanhol, mas sim sobre o professor Ortega y Gasset e sua forma de encarar a vocação professoral. O autor de "La rebelión de las masas" via sua atuação junto à imprensa como uma continuação de suas atividades educacionais, onde apresentava suas ideias, marcava posição frente a temas contemporâneos e, é claro, embrenhava-se em inúmeros entreveros. Ele afirmava que, para realizarmos com maestria a vocação professoral, é necessário que tenhamos nosso coração inclinado para um certo sacrifício heroico, para que se possa realizar algo maior do que nós mesmos: o ato de levar a luz do saber para os corações que se ve...