Pular para o conteúdo principal

MUITO ALÉM DO PARAÍSO PERDIDO

 

Fim de aula. Na verdade faltavam alguns poucos minutinhos para que o sinal fizesse eco pelos corredores do colégio e, enquanto aguardávamos o abençoado tilintar, aproveitei para comentar com os alunos a minha experiência com a leitura do livro “Paraíso Perdido”, leitura essa que a muito se perdeu nas brumas da minha memória, mas que muitas das impressões que tive, na época, ainda se fazem presentes em minha agrisalhada alma.

 

Enquanto tecia alguns comentários pra lá de pessoais a respeito desta obra de John Milton, um aluno, de forma jocosa, disse-me que não adiantava nada falar aquelas coisas para ele porque ele não gosta de ler e que dificilmente um dia iria criar gosto por isso. Outros, prontamente, concordaram com o colega.

 

Bobagem. Repito: uma tremenda bobagem. Quando qualquer pessoa me diz que não gosta de ler, sei que ela não sabe o que está dizendo. Na real, o problema não está no ato de ler, mas sim, nos livros que chegam às suas mãos para que eles tenham que deitar as suas juvenis vistas inquietas.

 

Tendo isso em vista, vem comigo e me diga uma coisa: tem cabimento esperar que um adolescente comece a gostar de ler exigindo que o abençoado leia um livro como “A moreninha”, ou algo similar? Algo me diz que, tal exigência, no mínimo, é uma tremenda furada, pra não dizer outra coisa.

 

O grande problema do público que afirma não gostar de ler é que nunca foram instigados, nunca foram desconcertados com uma leitura que realmente procure abordar temas, questões, problemas e dilemas que realmente possam lhes parecer provocadores, que toquem profundamente a sua alma.

 

Ao ser confrontado com essa situação, lembrei-me de uma cena do filme “O homem sem face” (1993), dirigido por Mel Gibson e com roteiro de Malcolm MacRury. Na cena que me veio à memória, o garotinho Charles "Chuck" Norstadt se recusou a ler o livro de poesia que foi apresentado pelo seu professor, o senhor Justin McLeod, dizendo que [adivinhem] ele não gostava de ler poesia porque ele achava isso uma bobagem, etc. e tal.

 

Justin McLeod ao ouvir esse comentário, perguntou ao guri: você não gosta de poesia ou da palavra amor? Houve um pesado silêncio por um instante entre eles. Esse era o “x” da questão. O problema não estava com a poesia, mas sim com a ideia que o garoto tinha dela. Diante do espanto manifesto pelo moleque, o professor lhe emprestou uma antologia de poesias que foram escritas por aviadores, muitos deles que, inclusive, haviam lutado na Segunda Guerra Mundial.

 

Relutante, e com uma cara de quem comeu e não gostou, o garoto levou o livro consigo e, para seu espanto, amou o que leu, porque não era um trem meloso, como ele imaginava, e como frequentemente chegava até as suas mãos. Não. Era algo titânico que fazia seus olhos marejar em lágrimas diante da força expressa pelas palavras e através dos versos.

 

Bem, se estamos nessa “vibe” de não gostarmos de ler, penso que deveríamos, sem pestanejar, mudar o rumo da prosa e passarmos a dizer para nós mesmos: eu, ainda, não encontrei o tipo de livro que toca os pontos sensíveis do meu ser, mas um dia irei encontrar. E pode ter certeza que depois que esses abençoados forem encontrados, quando formos atropelados por eles, pelos livros, iremos entender com clareza o que estava realmente nos faltando para entregarmos as meninas de nossos olhos a esse deleite sem igual que é a magia que se manifesta no ato silente de ler.

 

Podemos dizer que tal predileção do nosso olhar por certos temas, estilos e gêneros seria muito similar ao nosso gosto por certos filmes e determinadas séries. Há épocas em que estamos vidrados em filmes de terror e, passado algum tempo, os mesmos não mais nos cativam tanto. Noutras épocas nossos olhos vertem lágrimas diante de um épico e, passadas algumas primaveras, deixamos de ter “epifanias estéticas” diante deles e, assim o é, porque nosso estado de espírito vai se transformando com o passar do tempo e com as experiências que vamos vivenciando que, de quebra, vão agregando em nossa alma uma certa fortuna humana que, naturalmente, vai ampliando nosso horizonte de consciência e lapidando lentamente o nosso coração.

 

Por isso, não mais digamos para nós mesmos que não gostamos de ler, porque isso não é verdade. Digamos, sim, que nós não sabemos ainda quais são os tipos de livros que nós precisamos ler para que, ao lê-los, estes nos auxiliem em nosso aprimoramento como pessoa e que, com o auxílio da Graça Divina, em breve, muito em breve, iremos descobrir e, quando isso acontecer, terá início uma fascinante jornada de autoconhecimento.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

https://sites.google.com/view/zanela

 

Inscreva-se [aqui] para receber nossas notificações.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #026

Tal como a um falsário que cunha moedas falsas, os indivíduos com a alma embebida no cientificismo não se cansam de nos propor uma falsa imagem do ser. # Nascemos no tempo, mas não encontramos a nossa medida e razão de ser no tempo. # A cultura é o espelho amplificador da nossa vida espiritual. # Amizade é destino. Amigo não se escolhe, encontra-se. # Um escritor é o professor do seu povo, como nos ensina Soljenítsin e, por isso, um grande escritor é, por assim dizer, um segundo governo. Eis aí a razão por que nenhum governo, em parte alguma, ama os grandes escritores, só os menorzinhos. # Todo ser humano, em alguma medida, é feito de um sutil contraste de luz e sombra. # Quem tem amor no coração sempre tem algo para oferecer. Quem tem tudo, menos amor no coração, sempre sente falta de algo, de muita coisa; só não sabe dizer do quê. * Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. http...

COMPLEXO DE CHICÓ

Se tem um trem que as pessoas na sociedade moderna gostam de se ufanar é das suas opiniões e, quando se vangloriam disso, fazem questão de destacar que as suas opiniões sobre tudo e sobre todos não são opiniões chinfrim; nada disso, meu amigo, elas são “opiniões críticas”. Mas o que há de tão especial nisso para nos gabarmos? Como nos lembra o professor Gregório Luri, quando alguém começa a dizer que é muito crítica, a única coisa que esse abençoado está querendo dizer é que despreza e rechaça tudo aquilo que destoa dos seus pontos de vista e que irá tratar a pão de ló qualquer pataquada que esteja de acordo com tudo aquilo que ela supostamente pensa. Ui! Eu escrevi que muitas pessoas supostamente pensam? Sim. Eu queria ver — ah, como eu queria — essas mesmas alminhas críticas realizarem um inclemente exame de consciência sobre suas formosas opiniões a partir de uma questão, tão simples quanto modesta, como essa: quantas das nossas amadas e idolatradas opiniões são apenas e tão somen...

COM QUANTAS VIRTUDES SE FAZ UM HERÓI?

Todo herói, por sua própria natureza, é uma figura controversa, e o é por inúmeras razões. De todas as razões, há duas que, no meu entender, seriam intrínsecas à condição de personagem notável. A primeira refere-se à própria condição humana. Todos nós, sem exceção, somos contraditórios, motivados muitas e muitas vezes por desejos conflitantes, impulsos desordenados, paixões avassaladoras, e por aí seguimos em nosso passo demasiadamente humano. E os heróis, humanos que são, nesse quesito não diferem de nós. O que os distingue de nós é a forma como eles lidam com os seus conflitos internos e com sua natureza desordenada. A segunda seria o fato de que a forma como um personagem elevado à condição de herói é apresentado à sociedade. Dito de outra forma, de um modo geral, todos os heróis acabam refletindo os valores e ideias do tempo presente, daqueles que o reverenciam, não necessariamente as ideias e valores que eram, de fato, defendidos por ele quando estava realizando a sua jornada po...