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O GRANDE COMBATE

A oração, como dizem os simples com sua sabedoria, é o alimento da alma. Os santos dizem o mesmo e, até onde sei, o conselho dos primeiros, e bem como a instrução dos segundos, são uma verdade cristalina que somente os avoados fazem questão de ignorar.

 

Mas a oração não é apenas o alimento da alma. Ela é muito mais do que isso. Ela também é um combate, uma peleja que somos convidados a travar todo santo dia contra os nossos impulsos animalescos, contra as nossas concupiscências, contra os subterfúgios do mundo que nos arrastam para os abismos da perdição e, é claro, contra aquele que é nosso inimigo desde o princípio.

 

Por ser uma luta diária, a oração exige de nós uma boa dose de disciplina e da consequente e indispensável constância advinda dela. Constância e disciplina que, juntas e bem misturadas, formam aquilo que os santos padres do deserto chamavam de ascese.

 

Bem, aí está um conceito pra lá de interessante. Ascese era, desde os idos da Grécia antiga, a prática de exercícios que visavam fortalecer o indivíduo. Ascese era o nome dado a prática disciplinada de exercícios que era realizada pelos atletas para desenvolver as suas habilidades e, coincidentemente, também chamava-se ascese a realização diuturna de práticas que visavam o aprimoramento moral e espiritual dos indivíduos e, também, o mesmo conceito se aplicava àqueles que adotavam a filosofia como via, pois, sem disciplina e constância, não se tem como procurar amorosamente a verdade.

 

Mas tais apontamentos não estariam desacreditando a concepção da oração como alimento da alma? De jeito maneira. Todos sabemos que não é muito recomendado que procuremos alimentar o nosso corpo com qualquer coisa e de qualquer jeito. Todos sabemos, mesmo que não o façamos, que deve haver um equilíbrio e um certo regramento em nossa alimentação para que ela seja saudável e, consequentemente, promova a nossa saúde corporal e mental.

 

Todos nós também sabemos que, muitas vezes, somos assediados pela gastrimargia, aquela loucura do estômago, popularmente chamada de gula, e passamos a ter de combater o nosso desejo de querer comer tudo que é bobagem que aparece diante de nossos olhos. Enfim, da mesma maneira que todos sabemos que dois e dois são quatro, todos também estamos plenamente cônscios de que a realização de uma alimentação minimamente equilibrada é um verdadeiro combate contra nosso apetite desregrado.

 

Nesse sentido, não há contradição alguma em dizermos que a prática da oração é tanto o alimento da alma como um combate do espírito, pois a vida humana é, do princípio ao fim, do primeiro instante logo após a concepção até o último dia neste vale de lágrimas, uma peleja e, o grande combate desta guerra é travado, todo santo dia, não no mundo exterior, mas sim, em nosso universo interior, na nossa alma.

 

Por essa razão, é importante que lembremos que uma vida de oração não tem por objetivo primeiro a procura por algum tipo de consolo, de sensações agradáveis ou algo similar. Não que não possamos almejar e ter isso, mas não devemos esperar que essa seja a finalidade da vida orante, porque muitas e muitas vezes iremos nos sentir profundamente desconfortáveis na prática da oração.

 

Esse desconforto, essa noite escura se abate muitas vezes sobre nós porque, obviamente, estamos nos apresentando diante de Deus e, infelizmente, uma parte bem graúda de nós, de nossa maneira de ser, não está de acordo com a vontade do Senhor e, é claro, tal qual Adão e Eva, logo após o pecado original, sentimos um tremendo desconforto quando temos de nos apresentar desnudos diante do Altíssimo, desconforto esse que revela o quão distante estamos daquele que nós deveríamos ser, mas não somos por inúmeras razões e motivos.

 

Enfim, a vida de oração, como tudo o mais em nossa vida, é um combate e, enquanto tal, deve ser travado por nós, sem lesco-lesco, por cada um de nós, para que nossa vida possa realmente ser bem vivida e não apenas subsistida de forma à toa e fingida.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

https://sites.google.com/view/zanela

 

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