Já faz algum tempo, acredito que uns
onze ou doze anos, estava assuntando com um amigo, mulçumano por confissão e tradutor por profissão,
enquanto saboreávamos uma xícara de café. A prosa estava ótima, pena que não
posso dizer o mesmo do café. O abençoado adoçava o trem de um jeito que, só por
Allah. Enfim, mas o que realmente importa é que a prosa, naquela ocasião, foi
muito boa. Na verdade, todas as vezes em que nos sentamos para conversar era
uma grande alegria.
Nesta ocasião, como em outras mais,
conversávamos a respeito do ato de orar, da importância da prática da oração em
nossas vidas e, lembro-me, com cristalina clareza, das palavras do meu bom
amigo, que disse que quando nos colocamos em oração devemos lembrar, sempre,
que não apenas estamos diante de Deus, mas que, principalmente, estamos
desnudos diante Dele.
O problema é que nós oramos sem
tomarmos ciência, nem consciência, dessa nossa humana condição e, por isso, nos
fantasiamos com trejeitos mil diante de Deus, fazendo posse de justo indignado
em algumas ocasiões, noutras tantas de pecador arrependido e, ainda, há aqueles
momentos que portamo-nos, em nosso íntimo, como se fôssemos uma alma tão serena
quanto devota.
Muitas são as razões que nos levam a
ficarmos realizando, n0 recolhimento de nosso coração, essas encenações bufas, muitas
mesmo, porém, de todas elas, penso que uma que contribui de forma incisiva para
esse tipo de impostura, tremendamente humana, seria o nosso hábito de
dissimular uma pose postiça de cidadão indignado frente aos problemas miúdos e
graúdos que se apresentam na face da terra.
De modo algum estamos dizendo que a
justa indignação não deva ser devidamente manifesta e expressa, nada disso. A
questão que levantamos é que, incontáveis vezes, fazemos pose de indignados,
fantasiados de justos, frente a qualquer ninharia que se apresente diante de
nossos olhos e, tal atitude, com o tempo, acaba por se tornar habitual e,
enquanto tal, termina encobrindo e asfixiado a consciência de nossa
miséria existencial.
E se ela, nossa pobre consciência, se
vê amordaçada pelo nosso hábito de ficarmos “sinalizando virtudes” para todos
os lados por qualquer coisa que se apresente diante de nossas vistas, será
inevitável que acabemos por agir assim, desse modo, quando estivermos em estado de
oração, desnudos diante de Deus.
Podemos afirmar, sem medo de errar,
que quando oramos num estado de consciência cheio de camadas e dissimulações
como esse, nós estamos agindo de forma similar as personagens do conto “A roupa
nova do Rei” de Hans Christian Andersen, onde sua majestade, o Rei, está nu,
peladinho da silva, convicto de que está trajando a mais bela roupa do mundo
com o tecido mais refinado da terra, porque os “alfaiates” disseram-lhe que
apenas as pessoas inteligentes seriam capazes de ver tão belo tecido, de apreciar
tão formoso traje. E todas as pessoas do reino passaram a fingir que viam o que não enxergavam para parecer
ser quem eles não eram.
E é claro que, cada um de nós, ao
matutarmos sobre isso, mais do que depressa, lembramos daquele desafeto nosso,
daquele inimigo íntimo e, rapidamente, concluímos que tais traços descrevem de
forma precisa aquele biltre que não tem nada que ver conosco, porque, "sacumé", diferente
deles, nós nos consideramos almas limpíssima, alvejadas com água sanitária e
álcool gel espiritual.
Sim, todos nós, num primeiro momento,
mesmo que de forma breve, somos invadidos por esse tipo de pensamento tão bem
descrito por Nosso Senhor (Lucas XVIII: 9-14), mas não confessamos isso para
nós mesmos, de jeito maneira, tamanho é o grau de falsidade que soterra nossa
vacilante consciência.
Se cremos que tal fenômeno é algo que
apenas acomete almas de pouca fé, como a desse mísero escrevinhador atolado em
pecados, vejamos uma situação que pode muito bem ajudar-nos a alumiar nossas
vistas a respeito desse problema. Nosso Senhor nos ensina que devemos orar não apenas pelos nossos, mas
também, por nossos inimigos (Mateus V: 43-44); e isso, todos nós sabemos desde infantes.
Detalhe importante, muito importante:
conforme nos ensina C. S. Lewis, quando dobramos nossos joelhos e oramos a
Deus, pedindo por nossos desafetos e inimigos, sem nos darmos conta, estamos
nos colocando junto das chagas de Cristo, colocando nossas preces junto com as
Dele, onde o Filho do homem pede por todos nós que não sabemos o que estamos
fazendo, apesar de acharmos criticamente o contrário.
E tem mais! Nos colocando junto ao
coração de Cristo, orando por nossos adversários, estamos permitindo que Ele
atue sobre o nosso ser para conformá-lo de acordo com o Seu sacratíssimo coração.
Agora, se não conseguimos fazer nem
mesmo uma pequena prece por nossos desafetos e inimigos, no silêncio e no
recolhimento do nosso coração, também, sem nos darmos conta, estamos juntando nossa voz
à daqueles que estão com o coração inflado com ressentimentos, ódios e um bom tanto de soberba e, é claro, com a boa cheinha de palavras que exalam "justa indignação", pedindo para que a
lei permita que a infâmia e a perfídia sepultem o amor e a redenção.
Pois é. O rei está nu. Sempre esteve.
Nós também estamos. E de nada nos adiantará toda essa afetação de virtude,
gestada por um arremedo de consciência criticamente cega porque, ao final,
Aquele que um dia foi uma pobre criancinha numa manjedoura, nos dirá, tal qual a criancinha do conto: “você
está pelado, peladinho, e sua moral não é do tamanhão que você imagina ser”.
Fim de causo. Agora é hora de uma boa
xícara de café, preto e, pelo amor de Deus, sem açúcar.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva
Zanela
Nosso site: https://sites.google.com/view/zanela
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