Pular para o conteúdo principal

NÃO ERA APENAS UM RETRATO

Roland Barthes há muito havia dito que no século XXI seria analfabeto não somente aquele que não sabe ler e escrever, mas também aquele que não sabe interpretar uma imagem. O tempo passou e cá estamos nós, no finalzinho do primeiro quarto deste século e, mais uma vez, ele tinha razão. Atualmente, somos bombardeados por imagens e condicionados a dedicar-lhes pouca atenção e, com uma pressa desmedida, vamos olhando tudo, sem observar nada, para ao final emitir um juízo superficial e tosco como tudo o mais. Para realmente cultivarmos alguma profundidade em nosso olhar, é imprescindível que aprendamos a nos demorar diante daquilo que está diante do nosso olhar e apreciá-lo com atenção. É necessário que nos permitamos aprender a fazer perguntas para as imagens, não para simplesmente criticá-las, mas sim, para conhecermos melhor tudo o que está para além do que foi retratado. Um bom exemplo disso é o ensaio “Sobre um auto-retrato de Rembrandt” de Paul Ricoeur, onde o mesmo apresenta algumas reflexões profícuas sobre o auto-retrato que foi pintado em 1660. É profundamente esclarecedor para nós lermos suas observações sobre essa pintura, pois estas, de certa forma, nos ensinam a vermos de uma forma diferente o modo como outras imagens são produzidas. Dito de outro modo, ao lermos uma meditação como essa, nós vamos educando o nosso olhar através do olhar do outro, vamos lapidando nossa percepção atabalhoada por meio de uma percepção aquilatada. Outra obra que cinge seus passos nessa direção é o livro “A Peregrinação de Watteau à ilha do amor” de Norbert Elias, onde o autor, por meio de uma refinada reflexão sociológica, nos ensina a compreender a mudança de mentalidade de uma época através de uma obra de arte e a compreender os vários significados que a própria obra pode vir a ganhar em diferentes momentos históricos, refletindo, assim, a mentalidade de cada época. Não preciso nem dizer, mas, como sou teimoso, direi: olhando através dos olhos e das palavras do autor, nós aprendemos a analisar de uma forma diferente os valores que se fazem presentes nas imagens que nos circundam e a compreender que uma mesma representação ganha diferentes significados e importância com a mudança de ares e de contexto. Resumindo o entrevero: da mesma forma que sempre estamos aprimorando a nossa leitura, é imprescindível que nos dediquemos a ver melhor para não acabarmos sendo um analfabeto do século XXI.


*

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A QUADRATURA DO CÍRCULO VICIOSO”, entre outros livros.

https://lnk.bio/zanela 




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #026

Tal como a um falsário que cunha moedas falsas, os indivíduos com a alma embebida no cientificismo não se cansam de nos propor uma falsa imagem do ser. # Nascemos no tempo, mas não encontramos a nossa medida e razão de ser no tempo. # A cultura é o espelho amplificador da nossa vida espiritual. # Amizade é destino. Amigo não se escolhe, encontra-se. # Um escritor é o professor do seu povo, como nos ensina Soljenítsin e, por isso, um grande escritor é, por assim dizer, um segundo governo. Eis aí a razão por que nenhum governo, em parte alguma, ama os grandes escritores, só os menorzinhos. # Todo ser humano, em alguma medida, é feito de um sutil contraste de luz e sombra. # Quem tem amor no coração sempre tem algo para oferecer. Quem tem tudo, menos amor no coração, sempre sente falta de algo, de muita coisa; só não sabe dizer do quê. * Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. http...

PARA QUE A REPÚBLICA NÃO DESMORONE

Hannah Arendt nos ensina que a educação é o alicerce de uma república. É através de uma formação sólida que se edificam as bases sobre as quais os cidadãos poderão construir as suas vidas e desenvolver de forma plena a sua participação na sociedade. Por essa razão, não se deve brincar com a educação, nem agir de forma leviana em relação a ela, porque é através dela, da forma como ela é constituída, que se desenha o futuro e se edifica a personalidade dos indivíduos. Sobre esse ponto, José Ortega y Gasset nos chama a atenção para um fato que, muitas e muitas vezes é esquecido por nós: se almejamos saber como será a sociedade em que vivemos daqui a uns trinta anos, basta que voltemos os nossos olhos para aquilo que é vivenciado hoje nas salas de aula. Não tem erro, nem "lero-lero"; ali encontra-se o germe do futuro que nos aguarda. E tendo essa preocupação em mente, preocupação essa que há muito fora manifestada pelos dois filósofos acima citados, é que a professora Inger Enkvi...

COM QUANTAS VIRTUDES SE FAZ UM HERÓI?

Todo herói, por sua própria natureza, é uma figura controversa, e o é por inúmeras razões. De todas as razões, há duas que, no meu entender, seriam intrínsecas à condição de personagem notável. A primeira refere-se à própria condição humana. Todos nós, sem exceção, somos contraditórios, motivados muitas e muitas vezes por desejos conflitantes, impulsos desordenados, paixões avassaladoras, e por aí seguimos em nosso passo demasiadamente humano. E os heróis, humanos que são, nesse quesito não diferem de nós. O que os distingue de nós é a forma como eles lidam com os seus conflitos internos e com sua natureza desordenada. A segunda seria o fato de que a forma como um personagem elevado à condição de herói é apresentado à sociedade. Dito de outra forma, de um modo geral, todos os heróis acabam refletindo os valores e ideias do tempo presente, daqueles que o reverenciam, não necessariamente as ideias e valores que eram, de fato, defendidos por ele quando estava realizando a sua jornada po...