Pular para o conteúdo principal

SOMOS MAIS QUE UM ACESSÓRIO PARA MÁQUINAS

Inovar [tecnologicamente] não é educar. É apenas usar uma traquitana nova para não parecer retrógrado aos olhos modernosos dos outros.

Sim, é claro que inovar, em si, não é algo ruim, nem malévolo. Claro que não. Agora, colocá-lo como se fosse o centro da vida, como se fosse o trem mais importante do mundo é, no mínimo, uma baita de uma imprudência.

Pior! Tratar a inovação como se fosse a pedra angular da educação é uma atitude, no mínimo, inconsequente.

Explico-me. A cada dia que passa, sem nos darmos conta, muitos de nós estão projetando inúmeras de suas funções cognitivas em brinquedinhos eletrônicos e, ao fazer isso, não há dúvidas de que estamos tomando posse de uma ou de outra habilidade nova, porém, às custas de um punhado de deficiências que adquirimos, involuntariamente, junto com o pacote.

Os exemplos desse problema não são poucos, infelizmente. Por isso, peço licença para “chegar chegando” e apresentar apenas uma ou outra situação que, a meu ver, são bem perceptíveis, para não dizer gritantes.

O primeiro refere-se ao comportamento ansioso que, dia após dia, vem tomando conta de inúmeras almas, pueris e senis, deixando-as inquietas e agitadas e, consequentemente, limitando a sua capacidade de captar informações, de processá-las, de expressar o que foi captado e de dizer como foram processadas em nossa cumbuca.

Somos o tempo todo assaltados por informações de toda ordem e de toda e qualquer qualidade, numa velocidade muitíssimo além da potência “do motor” da nossa inteligência e imaginação. Tal velocidade, por sua deixa, vai fomentando em nosso íntimo uma expectativa de que tudo, para ter algum valor e receber um cadinho da nossa atenção, deve ser atraente e de acesso fácil como tudo o que nos é ofertado pelas mídias digitais e, é claro, ser fácil e rapidamente processado por nosso HD orgânico.

Ou seja, meu caro Watson, essa volúpia gerada pelo excesso de informações, que praticamente tornou-se, em muitos casos, uma forma de esquizofrenia digital, acaba por desestimular-nos a querer conhecer qualquer coisa que, num primeiro momento, apresente algum grau de dificuldade, por mínimo que seja.

Logo, se algo não pode ser compreendido na velocidade de um story, acaba não merecendo a nossa atenção que, a cada dia que passa, torna-se mais deficitária [como se algo pudesse ser realmente compreendido nesta velocidade].

Pior! Ao mesmo tempo em que não se compreende praticamente nada nessa velocidade, tem-se a sensação de estar empapuçado de informações, feito um moleque travesso que se entupiu de guloseimas antes do almoço.

O outro caso, por sua deixa, é a abdicação ou, no mínimo, a mutilação de nossa capacidade de escolher, selecionar e classificar que, por sua vez, acaba empobrecendo miseravelmente a nossa capacidade de investigar e, consequentemente, de avaliar, diagnosticar, organizar e assim por diante.

Tal mutilação ocorre devido ao uso indiscriminado que fazemos dos algoritmos que, é claro, são ferramentas muitíssimo importantes, mas que acabam fazendo as vezes de inúmeras de nossas funções cognitivas.

Hoje não mais fazemos pesquisas; são eles que fazem isso por nós. Eles organizam nossas listas de músicas, indicam as séries e filmes que gostaríamos de ver, nos ajudam a marcar encontros amorosos, nos orientam pelas estradas e por aí segue o andor.

Pior! Ao final, acabamos por depositar uma confiança desmedida nessas ferramentas e isso, creio eu, não é algo desejável.

Ora, ninguém nega que as inovações tecnológicas são extremamente úteis. Quer dizer, sempre tem um e outro loque. Porém, também não podemos querer tapar o sol com o iPhone e dizer que o uso imoderado e inconsequente destas ferramentas em nossa vida não está deixando um rastro [nada] sutil de destruição na inteligência humana.

Enfim e por fim, todas as inovações podem ser boas desde que os indivíduos sejam educados para tornarem-se pessoas e não apenas adestrados para serem um reles apêndice de um aparelho eletrônico porque, vale lembrar, somos mais que um simples acessório orgânico para uma máquina. Muito mais mesmo.

*

Escrevinhado 
por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A QUADRATURA DO CÍRCULO VICIOSO”, entre outros livros.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

POR UM O PONTO ARQUIMÉDICO

O filósofo polonês Leszek Kolakowski nos ensina que, quando começamos a cogitar a possibilidade de sermos uma grande farsa, é o momento em que realmente estamos iniciando nossa jornada pelas sinuosas veredas da filosofia. Se não somos capazes de olhar de frente as nossas misérias demasiadamente humanas, é sinal de que a nossa alma ainda se encontra mergulhada no fundo de uma caverna lúgubre, feito o Gollum do “Senhor dos Anéis”, que não se cansa de ficar acariciando o seu precioso, ao mesmo tempo que se divorcia da realidade. Podemos dizer que no mundo atual somos uma multidão de Gollums vagando de um lado para o outro, cada qual com o seu precioso, perdendo a lucidez, que é a pior cegueira que há, como nos lembra José Saramago. Falta de lucidez essa que nos torna cegos para o mal que se encontra aninhado em nosso coração e que nos impede de reconhecer a humanidade daqueles que odiamos - e que desumanizamos - sem saber porquê. Hannah Arendt, em “As Origens do Totalitarismo”, nos exp...

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #021

Uma sociedade onde criticar as instituições democráticas é uma impossibilidade pode ser qualquer coisa, menos uma sociedade democrática. # É com a crítica e a autocrítica que uma democracia se aperfeiçoa e se fortalece. Sem isso, ela fenece e se torna uma tirania que, ironicamente, continuará a se apresentar como democracia. # As pelejas políticas nunca são decididas em um único ato. Elas são lentamente desenhadas pela mão não tão invisível do "destino", que é guiada pelo braço do longo prazo. É apenas com o passar do tempo que os atos políticos do presente revelam sua forma e significado. # A construção do conhecimento não pode ser encarada como uma linha de montagem. # Estar publicamente ocupado não é o mesmo que ser produtivo. # Não existem equipes que são essencialmente ruins; o que existe são equipes mal conduzidas por aquilo que poderíamos chamar de líderes "reborn". # As lições que a vida nos apresenta só são difíceis de ser assimiladas por aqueles que fazem ...

NO PARAÍSO OCULTO DAS LETRAS APAGADAS

Paul Johnson, no livro “Inimigos da Sociedade”, afirmava que uma das grandes delícias da vida é poder compartilhar suas ideias e opiniões. Bem, estou a léguas de distância do gabarito do referido historiador, mas posso dizer que, de fato, ele tem toda razão. É muito bom partilhar o pouco que sabemos com pessoas que, muitas vezes, nos são desconhecidas, pessoas que, por sua vez, pouco ou nada sabem a nosso respeito. E essa imensidão de desconhecimento que existe entre autores e leitores deve ser preenchida para que aquilo que está sendo compartilhado possa ser acolhido. Vazio esse que só pode ser preenchido por meio de um sincero e abnegado desejo de conhecer e compreender o que está sendo partilhado e de saber quem seria o autor desse gesto. Para realizarmos essa empreitada, não tem "lesco-lesco": será exigida de nós uma boa dose de paciência, dedicação, desprendimento e amor pela verdade. Bem, é aí que a porca torce o rabo, porque no mundo contemporâneo somos condicionados...