Pular para o conteúdo principal

OS ESCRAVOS DO TEMPO

Grande parte da cultura popular é forma tosca de propaganda do passado: autoritária, atrasada e brega


A palavra "propaganda" tem mau nome. Difícil discordar. O século 20 não foi um passeio no parque. E o totalitarismo provocou milhões de cadáveres tendo na propaganda um aliado mortal.


Verdade: se entendermos por propaganda o uso da arte para veicular ideias religiosas, políticas ou sociais, grande parte da história da arte é um exercício contínuo de propaganda. Mesmo a máxima "a arte pela arte" é uma posição política, ou então apolítica, que não atraiçoa o proselitismo original.


Mas a "propaganda" que conta é outra: o uso da arte, sim, para disseminar ideologias de dominação. E, nesse quesito, como esquecer a Alemanha nazista ou a União Soviética comunista?


Na Alemanha, a propaganda do Reich fez-se a dois tempos: por um lado, destruindo a "decadência" modernista e a sua mensagem de "degeneração" e "negritude"; por outro, promovendo uma arte capaz de exortar o valor da raça ariana --forte, sadia, superior-- como se vê nas pinturas de Adolf Ziegler.


Na União Soviética, não foi diferente: o "realismo socialista" passou a dogma em 1934. A "função" da arte era indistinta da mensagem do Partido: o líder passou a figurar em público na sua monumentalidade esmagadora --e o povo, agente revolucionário por definição, era retratado como a força vital da nação rumo a um progresso glorioso.


O nazismo jaz no caixote do lixo da história. O comunismo, tirando dois ou três estados-zombies, também. Mas a propaganda está de volta: se o tribalismo político regressou ao mundo dos vivos, a sua estética preferida não poderia ser deixada de lado.


Semanas atrás, o historiador português Rui Ramos escreveu no site Observador que, nos prêmios das diferentes indústrias, ninguém discutia a "qualidade" dos produtos. O que interessava era saber se os filmes ou as músicas obedeciam a critérios de "representatividade".


Por outras palavras: mais importante do que saber se o filme X valia como obra cinematográfica era saber qual o sexo do diretor Y ou a etnia do ator Z. Concordo com o meu ilustre compatriota. Basta olhar em volta para perceber que as preocupações estéticas deram lugar à retórica repugnante da ideologia.


No New York Times, Lindy West é apenas um exemplo da corrupção em curso: em texto que faria as delícias de um tirano, a sra. West proclamava que a queda dos "homens maus" na indústria de cinema já não era suficiente.


Agora, era preciso enterrar de vez os "filmes maus". E o que são os "filmes maus"? Precisamente: obras que não se ajustam a ideias preconcebidas de raça, sexualidade ou justiça social. Joseph Goebbels não diria melhor. Mas Lindy West não é caso único. A revista The New Yorker, que está francamente insuportável, perguntava nas vésperas do Oscar quantos filmes seriam aprovados pelo "Teste Bechdel".


Segundo esse teste, existem três questões fundamentais que devem ser formuladas sobre qualquer filme: a) existem duas (ou mais) personagens femininas com direito a nome próprio?; b) essas personagens falam uma com a outra?; c) em caso afirmativo, será que as personagens femininas falam sobre assuntos que não incluam "o homem"?


Para a revista, "Lady Bird", "The Post" e "Corra!" passam no teste. "A Forma da Água", "Dunkirk" e "O Destino de uma Nação" fracassam miseravelmente. Moral da história?


Grande parte da cultura popular é uma forma tosca de propaganda. O livro, o filme ou a peça de teatro já não obedecem a critérios estéticos ou intelectuais do criador. As obras ajustam-se a uma cartilha tão autoritária, atrasada e brega como as propagandas do passado.


Sim, não temos denúncias de "negritude", "bolchevismo cultural" ou "decadência burguesa". Mas, no seu lugar, surgem os pecados do "machismo", da "heteronormatividade" ou da "misoginia". O fim é o mesmo: a abolição da liberdade individual pelo fanatismo da tribo. Perante isto, a pergunta leninista: o que fazer?


Pessoalmente, tentar remar contra os novos bárbaros --ou, inversamente, pensar e criar como se eles não existissem. É a única forma de proteger a integridade da arte.


Até porque há uma lição consoladora na história da propaganda: os bárbaros acreditam que têm o "espírito do tempo" do seu lado. Fatalmente, quando lemos os seus nomes em livros esquecidos, nenhum deles legou uma obra que mereça dois segundos de atenção.


Faz sentido: quem é escravo do tempo morre com o tempo.


*


João Pereira Coutinho - escritor português e doutor em ciência política.


Publicado em 06 de março de 2018, na Folha de São Paulo.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #007

Nada se transforma mais rápido em indiferença do que o horror, quando este se torna cotidiano.   #   A ironia, um dia desses, há de nos redimir, ou terminará de nos achatar.   #   Não tenhamos medo de sermos espezinhados; e, se formos pisados, alegremo-nos, porque as ervas, quando são pisoteadas, se tornam caminho.   #   Quanto mais um sujeito se imagina livre, livre da Silva, mais suscetível a ser doutrinado e subjugado ele está.   #   A conversa mofada sobre cultura não é tanto um sintoma daquilo que poderíamos chamar de “a religião dos ateus”, mas sim um claro indicativo da idolatria dos incultos.   #   Toda paixão igualitária é um veneno, uma peçonha que perverte o sentido crítico de qualquer um até o tutano, por atrofiar na alma do indivíduo a faculdade que nos permite fazer distinções.   #   Um dos primeiros passos rumo ao santuário da sabedoria reside na capacidade de admitirmos que nossas ideias – nossas amadas e idolat...

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #003

A disciplina nunca nos falta; somos nós que, inúmeras vezes falhamos com ela. # Nunca nos esqueçamos: uma derrota nunca é definitiva. O mesmo vale para as vitórias. # Só as almas superficiais abordam ideias, ideais e ideologias de forma sutil e delicada. # Fracassar na vida é ter as janelas da alma abertas para o assombro da poesia e para o espanto da filosofia – sem o amparo do talento. # Tudo aquilo que chega aos nossos ouvidos, ouvimos com uma certa dose de esperança e medo. O problema, como sempre, está na dose. # Sem autoconhecimento, a palavra liberdade torna-se apenas mais um tapume para tentar ocultar, de nós mesmos, a nossa vil escravidão. # Em grande medida, a história das ideias, ideais e ideologias é a história dos rancores dissimulados. # Temos muitas biografias de vidas bem-sucedidas nas mais variadas searas e todas elas nos mostram que o caminho para o triunfo é sempre pavimentado com fracassos e derrotas. # Por meio do cultivo da virtude da paciência, conquistamos e dem...

O ABACAXI ESTÁ EM NOSSAS MÃOS

Dia desses, eu estava folheando um velho caderno de anotações, relendo alguns apontamentos feitos há muito tempo, e entre uns rabiscos aqui e uns borrões acolá, eis que me deparo com algumas observações sobre o ensaio "La misión pedagógica de José Ortega y Gasset", de Robert Corrigan. Corrigan faz algumas considerações não a respeito da obra do grande filósofo espanhol, mas sim sobre o professor Ortega y Gasset e sua forma de encarar a vocação professoral. O autor de "La rebelión de las masas" via sua atuação junto à imprensa como uma continuação de suas atividades educacionais, onde apresentava suas ideias, marcava posição frente a temas contemporâneos e, é claro, embrenhava-se em inúmeros entreveros. Ele afirmava que, para realizarmos com maestria a vocação professoral, é necessário que tenhamos nosso coração inclinado para um certo sacrifício heroico, para que se possa realizar algo maior do que nós mesmos: o ato de levar a luz do saber para os corações que se ve...