Pular para o conteúdo principal

O RONRONAR MANHOSO DO GATO MALHADO

Umberto Eco, em sua obra “Cinco escritos morais”, nos chama a atenção para uma questão que, ainda nos dias atuais, se faz presente sobre a mesa da opinião pública e dos botecos, que é a tal da tolerância e, de cara, o finado escritor italiano, sem dó, coloca o dedo na ferida, quando diz que para sermos realmente tolerantes, deveríamos compreender que existem muitíssimas coisas que são intoleráveis, inclusive e principalmente, em nós mesmos, que nos consideramos, assim, a “cara escarrada do bem”.

 

Sim, eu sei, abunda no mundo atual o número de pessoas que quer parecer fofa, fofíssima, a todos os olhares midiáticos, e que fazem questão de dizer que estão de braços abertos, feito um personagem do desenho animado “ursinhos carinhos”, para abraçar a todos, sem discriminação, no dia intergaláctico do abraço e da amizade.

 

Mas, aí vem a pergunta que não quer calar: é possível abraçarmos, com a mesma reverência e consideração, um integrante da Toca de Assis e um entusiasta fervoroso de Joseph Stálin? Bem, isso algumas vezes se torna possível porque, muitas vezes, nivelamos os extremos sem qualificá-los. E se os nivelamos e os igualamos é porque, simplesmente, almejamos muito mais o apreço advindo do espírito do mundo, do reino das opiniões, do que o amor à verdade.

 

Quando desprezamos o amor pela verdade, sem nos darmos conta, acabamos por perder, de vereda, a verdade do amor; porque quem não sabe desprezar, não sabe respeitar. E se não sabemos o que significa o tal do respeito, o amor acaba sendo reduzido a apenas uma palavra a mais em um vocabulário palavroso até a tampa e, por isso mesmo, desprovido de uma significação genuína.

 

Ao afirmar isso não estou dizendo que devemos ir de encontro com aqueles que tenham uma posição discordante da nossa. Muito pelo contrário. O que digo, e não me canso de repetir em minhas escrevinhadas, é que devemos procurar sempre a verdade para extirpar todos os erros, especialmente os erros que cultivamos com tanto afeto em nosso íntimo e que, por isso, defendemos publicamente com tanta convicção.

 

Aliás, essa é uma atitude profundamente intolerável e que, por isso mesmo, acaba fomentando toda ordem de barbaridades porque, a partir do momento que aderimos a uma corrente de opinião, pouco importando qual seja, sem tê-la examinado com o devido zelo e atenção, sem nos darmos conta, terminamos nos dispondo a fazer e dizer qualquer coisa para calar todas as vozes que ousem se levantar para nos chamar a atenção para os erros que estamos defendendo com unhas e dentes.

 

Ao colocar esse fato no centro dessa prosa, não estou convidando o amigo leitor a rememorar os ditos e feitos dos seus desafetos políticos, muito menos sobre a forma como eles defendiam as suas posições, mas sim, convidando-o para fazermos um exame de consciência, sincero e inclemente, da forma como nós agimos e reagimos diante de tudo aquilo que contradiz nossas mais íntimas convicções e, é claro, a mapearmos com franqueza as nossas crenças e ideias para constatarmos o quanto que nós realmente as conhecemos.

 

Sim, eu sei, você sabe, todos nós sabemos que não iremos fazer isso e, não iremos, em primeiro lugar, porque examinar nossas ideias e crenças é um trem trabalhoso e leva um tempão. Para ser sincero, é um trabalho para vida toda.

 

Em segundo lugar, para realizar uma tarefa dessa monta, nós temos que ter um abnegado amor pela verdade, ao ponto de abandonarmos nossas convicções se estas se revelarem um punhado de patacoadas.


Pois é. Mas ninguém quer isso, não é mesmo? Nós não queremos a verdade; queremos apenas ter razão diante daqueles que discordam de nós para, com isso, nos deleitar. Só isso e olhe lá.

 

Lembremos: onde não há amor por ela, pela verdade, não há espaço para o verdadeiro amor; e se não há espaço para ele, a tolerância acaba sendo reduzida a apenas uma palavra de efeito para encobrir a nossa transigente e truculenta covardia moral, política e intelectual.

 

Se não temos a coragem, a ousadia de refletir sobre a efetiva validade dos nossos pontos de vista, sobre os nossos valores e convicções, se não temos o destemor para reconhecer os nossos erros, é sinal de que não estamos abertos para diálogo nenhum. Pior! É sinal de que estamos doidinhos para censurar todos aqueles que não sejam “tolerantes” como nós.

 

Por isso, lembremos e, se possível for, jamais esqueçamos que, como nos ensina Fulton Sheen, podemos até não sermos capazes de nos reunir para sentarmos junto à mesa, mas podemos e devemos nos encontrar de joelhos diante do Senhor, mesmo que estejamos separados por nossas opiniões e convicções.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros.

https://lnk.bio/zanela

 


 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #013

Deus é misericórdia. Sempre é. O problema é que nosso orgulho nos cega e não nos permite ver e sentir a presença do seu amor em nossa vida.   #   Nada é tão ofensivo quanto um elogio indevido.   #   Todo pacato cidadão é, no fundo, um tirano desocupado. Todo cidadão que se diz crítico é, no fundo, um tirano atarefado.   #   O entusiasmo bestial, que a tudo destrói, está presente, oculto, no fundo de todas as nossas convicções furadas.   #   A História é um grande desfile de falsos absolutos.   #   O que é o inferno? O inferno é senão o sofrimento de não ser mais capaz de amar.   #   Tudo aquilo que não podemos dizer, em alguma medida, nos define.   #   Ocupar o tempo livre com toda ordem de distrações é o mesmo que entorpecer o corpo, a mente e a alma com coquetéis de drogas e demais tranqueiras similares.   *   Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de...

QUANDO O CALDO ENTORNA

Prudência e canja de galinha, como nos ensina o velho ditado, nunca fizeram mal a ninguém. Agora, a falta da primeira tem feito um estrago danado na vida de muita gente. Os antigos nos ensinam que a prudência é a mãe de todas as virtudes, porque ela nos convida a arrancar nossas ações do guiamento das sombras da ignorância para que possam ser alumiadas e orientadas pelas labaredas da sabedoria. E sabedoria não é, de maneira nenhuma, aquela coleção de colóquios aguados que encantam e iludem muitos, sem incomodar ninguém. Sabedoria, antes de qualquer coisa, é o cultivo amoroso pela procura da verdade, onde quer que ela esteja, para que possamos conhecê-la e, conhecendo-a, permitir que ela redima nossos equívocos passados através das nossas decisões no momento presente, projetando, desse modo, uma nova orientação para as nossas escolhas futuras. Por essa razão, ela jamais será um conjunto de frases insossas, reverberadas por pessoas ocas, cheias de presunção e ornadas com títulos toscos e...

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO HETERODOXO #012

A temperança é uma força interior; por isso, não a confunda com a afetação exibida nos mais variados ambientes sociais, inclusive nas redes sociais.   #   Disciplina não é privação, é conquista.   #   Dedicação sempre gera dividendos.   #   Liberdade exige disciplina. A disciplina nos brinda com a liberdade.   #   A vida tem menos a ver com talento do que com temperamento. E muito mais importante do que o temperamento são as virtudes que cultivamos para corrigir os defeitos advindos dele e da nossa falta de talento.   #   Nunca nos esqueçamos: ninguém merece. Ninguém é merecedor. Compreendamos isso e nos libertemos dos fantasmas que assombram a nossa consciência.   #   De fato, Deus pode ficar silente por algum tempo, mas Ele jamais estará ausente da nossa vida.   *   Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “REFAZENDO AS ASAS DE ÍCARO”, entre outros livros. htt...