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ENTRE CRUZES E CALVÁRIOS

Toda alma é uma cruz aqui plantada, diz-nos Bruno Tolentino em seu livro “Os Deuses de Hoje” [1]. Eu, você, todos nós somos uma cruz com um coração palpitante no centro do madeiro, apontando para a direção que nós mais amamos.

 

A cruz é um símbolo arquetípico poderosíssimo, que se encontra presente em inúmeras tradições, como inúmeros outros símbolos que acreditamos serem tão particulares, tão exclusivos de uma e outra tradição [2].

 

Nesse sentido, quando temos em nossa mente a imagem deste símbolo, a cruz, é importante lembrarmos que a trave horizontal simboliza o plano do mundo material, natural, social e político.

 

Estamos inseridos neste plano, fazemos parte dele, mas não fomos feitos para nos realizarmos plenamente nesta dimensão restritiva da realidade.

 

Bem, junto a trave horizontal temos a trave vertical, que nos aponta para a perspectiva da eternidade e do infinito, lembrando-nos que a vida é muito mais profunda do que as aparências que nos circundam e que invadem os nossos sentidos e que ela, a nossa vida, não termina aqui, abruptamente e em definitivo.

 

Estamos no mundo, mas não devemos ser mundanos. Fomos feitos para o infinito, mas não podemos ignorar o peso e a força de tudo que está a nossa volta nos limitando.

 

Em resumo, eis aí a tal da condição humana.

 

Infelizmente, todos nós, em algum momento, podemos acabar por nos apegar ferozmente a alguma ideologia que agrilhoa, sem dó, os nossos olhos, prendendo-os unicamente à dimensão horizontal, como se o mundo político, social e natural fossem as únicas dimensões que compõem a realidade e que dão forma a nossa humanidade.

 

Tal estreitamento da percepção, consequentemente, acaba por escravizar a nossa consciência, bloqueando a abertura da nossa alma para o infinito. E isso não é apenas triste. É perigoso.

 

Outras vezes, também, com grande infortúnio, podemos acabar nos vendo amarrados com cordas baratas a haste vertical, abraçados a algum tipo de misticismo moderninho, egocêntrico e egolátrico, que leva-nos a desprezar a realidade deste mundo com suas agruras e perrengues.

 

Sim, estamos de passagem, como peregrinos, mas aqui estamos e, também, quando restringimos nosso olhar unicamente para uma perspectiva supostamente espiritualizada, terminamos num outro tipo de mutilação da nossa consciência, tão vil e abjeto quanto o que foi anteriormente apontado.

 

Quando olhamos para o século XX, e temos nossas vistas invadidas pela imagem dos regimes totalitários que destroçaram, e que ainda despedaçam a vida de milhões de pessoas, quando lembramos das inúmeras seitas e cultos que subjugaram e subjugam multidões, reduzindo-as à condição de um pet dócil e obediente, compreendemos, com uma terrificante clareza, que não é muito difícil termos a nossa mente degradada e nossa alma escravizada.

 

Basta apenas que nos permitamos ficar numa posição de fragilidade por termos aceitado limitar nossa percepção da realidade a apenas uma de suas dimensões.

 

Por isso, lembremos, toda vez que tomarmos um Crucifixo em nossas mãos - Crucifixo este que, muitos de nós, carregam junto ao coração - está a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Lá está o Filho do Homem, lembrando-nos que Ele é o centro da cruz, o centro da vida, onde a trave horizontal encontra-se com a haste vertical, revelando-nos a face do Deus verdadeiro e, ao mesmo tempo, o rosto do verdadeiro homem.

 

Deste modo, o Verbo divino encarnado e crucificado está nos convidando a nunca esquecermos qual é o caminho, a verdade e a vida.


Ele está nos lembrando, hoje e sempre, que seu coração transpassado está aberto para adentrarmos nele e, junto com Ele, ascendermos para junto da morada eterna e, Nele, permitirmos que o reino de Deus irradie sua luz neste mundo, através do nosso coração unido ao Dele.


E assim, com Ele, estaremos defendendo nossa consciência contra todas as ideologias mundanas que não medem esforços para nos destruir.

 

Por essa razão, e por muitas outras, Nosso Senhor nos admoesta para que o sigamos abraçando a nossa cruz de cada dia com Ele em nosso coração, sempre lembrando Dele quando voltarmos nossos olhos para os nossos semelhantes que, como nós, por mais desprezíveis que sejamos, fomos feitos à imagem e semelhança de Deus, que se fez como nós, que morreu por cada um de nós, para que lembremos, e jamais esqueçamos, quem somos.

 

Nós somos uma cruz, como disse o poeta. Uma cruz plantada neste mundo para almejar retornar ao descampado da eternidade, junto a árvore da vida.

 

Referências:

 

[1] TOLENTINO, Bruno. Os deuses de ontem. Rio de Janeiro: Record, 1995.

 

[2] GUÉNON, René. SIMBOLOS FUNDAMENTALES DE LA CIENCIA SAGRADA. Barcelona: Ediciones Paidós, 1995.

 

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Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor, escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros ebooks.

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