Quanto mais uma palavra circula pelas ruas e vielas que dão
forma àquilo que convencionamos chamar de opinião pública, mais ela vai
perdendo sua substância, chegando ao ponto de, inclusive, significar, ou
sinalizar, algo que seja literalmente o contrário do seu sentido originário.
Um exemplo interessante disso nos é apresentado pelo escritor
israelense Amós Oz [1], quando esse nos chama a atenção para os usos e abusos
que são feitos com a palavra amor.
Para tanto, como bom artífice da palavra, ele nos chama a
atenção para o óbvio ululante, que é tão tola e soberbamente desdenhado por
nós. É o seguinte: uma pessoa é apenas capaz de amar verdadeiramente, no
máximo, umas vinte pessoas. E tem outra: se essa pessoa for amada por outras
vinte, com certeza ela pode se considerar um sujeito afortunado.
E por que ele nos diz isso? Porque todas as vezes que vemos um
caboclo bradando aos quatro ventos que ama todos os brasileiros, toda a América
Latina, toda a humanidade, pode ter certeza que isso é um teatrinho bufo, uma
baita de uma farsa, um perigosíssimo engodo.
Meu caro Watson, amor é uma coisa séria, é um estado do ser e,
por isso, toda vez que essa palavra abençoada é utilizada de forma leviana,
como um slogan de apelo político ou mercadológico, ela não estará referindo-se
ao amor, enquanto um gracioso ato de entrega, como bem nos ensina Luís Vaz de
Camões [2]. Nada disso.
Na verdade, quando se usa uma palavra tão profunda de forma tão
abrangente, dilatada e vaga, tudo aquilo a que ela vier a se referir acabará se
diluindo e convertendo-se no seu oposto, sem que praticamente ninguém se dê
conta do que aconteceu [3].
Tal esvaziamento termina levando a mutilação da palavra que não
mais nos conectará à realidade que ela até então nos apresentava. Ao invés disso,
a sua riqueza acabará sendo instrumentalizada, nos fechando em guetos tribais
incomunicáveis, arredios uns aos outros.
Nesse sentido, se formos refletir sobre os abusos que a palavra
amor vem sofrendo no mundo contemporâneo, compreenderemos, com uma enfadonha
clareza, porque incontáveis pessoas que usam a palavra amor conseguem a façanha
de, ao mesmo tempo, proclamar seu amor pela Humanidade e destilar a sua peçonha
totalitária [4].
E não adianta muito querer chamar a atenção de tais indivíduos
para isso porque, como havíamos apontado, quando as palavras são mutiladas e
reduzidas a um reles slogan político ou publicitário, as pessoas isolam-se de
forma insular e, por isso, de seus cantinhos, acreditam que conseguem ver tudo,
tudinho, sem enxergar nada, nadinha. Não enxergam, principalmente, as
obviedades patentes que estão diante de seus narizes.
E não enxergam porque o óbvio nunca é tão óbvio assim.
Todas as informações que chegam até nós, pelos mais variados
canais, passam não apenas pelos filtros dos meios de comunicação, mas também,
pelos filtros do nosso olhar, que tem seu campo de abrangência formatado,
limitado pelas palavras, pelas referências de significado que utilizamos.
Sem dúvida alguma, quando as referências de significado que
usamos são apenas palavras de significado mutilado, a nossa capacidade de
compreensão ver-se-á drasticamente reduzida. E tem outra: essas mesmas palavras
mutiladas, que tudo explicam sem nada dizer, acabam dando um grande poder de
mobilização para as massas que serão conduzidas para a realização de
finalidades que, obviamente, elas têm apenas um vago vislumbre do que seja [5].
Por isso, é fogo na roupa quando vemos o uso abusivo de palavras
esvaziadas de sentido, para moldar a opinião pública e manipular os sentimentos
gerais das pessoas, frente a determinados temas sensíveis e, é claro, em
relação umas às outras. Definitivamente, tal prática, é o suprassumo do
maquiavelismo.
Diante do exposto, penso que podemos refletir, com nossos
alfarrábios, não apenas a respeito dos usos e abusos que são realizados com a
palavra amor, mas também, com inúmeras outras que são repetidas de forma
exaustiva junto à opinião pública, como: democracia, liberdade de expressão,
patriotismo, agressão, Estado de democrático de direito, fascismo, nazismo,
comunismo e assim por diante.
Resumindo o entrevero: não são poucas as palavras que foram
mutiladas pelo uso irresponsável e leviano e, por isso, imenso é o fosso que
encontrasse aberto entre nós e a realidade. E, ao que tudo indica, poucos são
os que estão interessados em corrigir essa estrovenga; não nos outros, mas sim,
no próprio coração.
Enfim, que Deus tenha misericórdia de todos nós porque, como
todos bem sabemos, os mutiladores das palavras ignoram completamente o que seja
essa tal de misericórdia.
+ + +
Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela - professor,
escrevinhador e bebedor de café. Autor de “A Bacia de Pilatos”, entre outros ebooks.
Site: https://lnk.bio/zanela
Referências:
[1] OZ, Amós. Como curar um fanático. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015.
[2] CAMÕES, Luís Vaz de. Amor é fogo que arde sem se ver.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
[3] ORWELL, George. O que é o fascismo? E outros ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[4] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Nacional,
1975.
[5] Canetti, Elias. Massa e poder. São Paulo: Melhoramentos,
1983.
+ + +
Inscreva-se [aqui] para receber nossas notificações.
Comentários
Postar um comentário