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PARA REPIMPAR O NOSSO OLHAR

É muito fácil nos iludirmos, fácil barbaridade, principalmente se acreditamos que estamos imunes a isso. Aí meu amigo, se esse for o caso, não adianta ficar olhando para o nada com aquele olhar de garoupa congelada, pra disfarçar o vexame. Não adianta mesmo.

 

E não tem lesco-lesco. Qualquer um que imagina-se muito crítico, pairando acima de todos os reles mortais alienados, bem provavelmente não passa de um pobre diabo que está com o seu discernimento lazarentiado de ponta a ponta.

 

Tendo isso em vista, penso que as palavras do historiador Carroll Quigley, em seu livro “A evolução das civilizações”, são providenciais. Ele, no referido livro, nos chama a atenção para um problema que frequentemente turva, de modo significativo, a nossa percepção da realidade e bem como a nossa compreensão a respeito da dita-cuja.

 

Quingley lembra-nos que todas as vezes que nos inteiramos a respeito de algum assunto, necessariamente, nós o fazemos tomando como referência um modesto conjunto de princípios que, por sua deixa, norteia a nossa investigação e recorta os fatos coletados por nós, para imprimir-lhes um significado e ordená-los, de uma forma tal, que eles venham a ganhar um determinado sentido diante de nossos olhos.

 

Ora, se estamos cientes de que nós realizamos essa seleção, ordenação e construção e que, poderíamos fazê-lo com base em outros critérios e princípios, é sinal de que estamos conscientes de que a procura pela compreensão da realidade é sempre tão problemática quanto precária. Não tem “mamãe, a barriga me dói”.

 

Agora, se somos daqueles que nunca pararam para ponderar a respeito disso e, por isso mesmo, imaginamos que a forma como ordenamos os fatos que recortamos seria a aproximação mais precisa da realidade, só porque nos agrada, esse, meu amigo, é um claro sinal de que estamos sendo feitos de bobo por alguém, e não adiante ficar com a cara pálida feito bunda escandinava, porque essa é a mais pura verdade.

 

Aliás, para tornar isso mais evidente, vejamos dois exemplos desse tipo de impostura, que poderíamos, de maneira jocosa, chamar de síndrome de Smigol, já que gostamos tanto de ficar agarrados a uma narrativa furibunda, crentes de sua “preciosa autenticidade”, somente porque a caipora apetece a demência ideológica do nosso precioso anel cerebrino.

 

Ano passado, como é de conhecimento de todos, em plena corrida eleitoral, vetustas figuras do TSE classificaram, como sendo “fake news”, às notícias que associavam o senhor Loola ao ditador Daniel Ortega, da Nicarágua, apesar do longo histórico de boas relações existentes entre esses senhores que, inclusive, são coleguinhas de longa data no Foro de São Paulo.

 

Neste ano, como todos sabem muito bem, o governo Loola III decidiu, democraticamente e com muito amor, não assinar uma declaração que denuncia, junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, os crimes perpetrados pelo ditador Daniel Ortega.

 

Detalhe: a referida declaração foi assinada por representantes de 55 países.

 

Bem, cada um pode, a partir dos princípios e critérios de sua escolha, dar o sentido que bem entender a esses fatos e se virar nos trinta com as conclusões que obtiver, porém, uma coisa é mais do que certa: independente dos referenciais que venhamos a adotar, a intimidade entre Loola e Ortega nunca foi fake.

 

Abre parêntese: e não duvide, como dizia o saudoso escritor Janer Cristaldo, do que os órfãos de Deus, encharcados de ideologia, são capazes de fazer para defender o indefensável. Fecha parêntese.

 

Outro exemplo interessante desse tipo de ilusão “criticamente crítica” é a crença que alguns alimentavam, e ainda alimentam, em torno daquilo que se convencionou chamar de um “conto de fardas”, onde as forças armadas iriam, com uma vassoura de palha, varrer para lata de lixo da história toda a corrupção, toda a bandalheira, juntamente com o projeto de poder do Foro de São Paulo.

 

Pois é, então vejamos o seguinte: quantos militares estavam realmente dispostos a fazer isso? Quantos oficiais realmente se identificavam com essa agenda política? Aliás, quantos estavam dispostos a arriscar as suas carreiras, burocraticamente confortáveis, para entrar numa aventura desse naipe furado? Pois é, creio que nenhum dos “analistas de diário oficial” parou para pensar nisso nas setenta e duas horas que não terminavam nunca.

 

E não se perguntavam porque esses abençoados além de apenas selecionar os fatos por uma perspectiva pra lá de estreita, também sofriam de uma gula terrível por “notícias nervosas” que, francamente, só por Deus.


Resumindo, essa galera galerosa agia e age como se a história se movesse na velocidade de uma postagem escandalosa numa rede social.

 

Agora, ao invés disso, essa turminha poderia ter parado para ler, por exemplo, um livro como “Forças armadas e política no Brasil”, do historiador José Murilo de Carvalho e, se tivessem feito isso, saberiam que o “conto de fardas” era e é uma absoluta impossibilidade.

 

Na referida obra, entre outras coisas, o autor nos apresenta um retrato (precário e provisório, mas, ainda assim, um bom retrato), do perfil político das Forças Armadas, o qual teria os seguintes tons: 91% dos oficiais se consideram de “centro esquerda” e de "centro-direita", 6,5%, se consideram de direita e nenhum de esquerda.

 

Ou seja: a maioria acachapante dos oficiais das Forças Armadas não tem nenhum pendão político ideológico claramente demarcado que ouse ir além das quatro linhas da tecnocracia verde-oliva.

 

E há outro dado importante: o grande esforço do exército, em particular, desde a proclamação da República em nosso país, é o da profissionalização dos seus quadros, e não a sua politização. Penso que essa informação tinha que estar presente nas “análises” realizadas pela galera “patriótica”, não é mesmo? Pois é, mas não estava não. Apenas estavam as ilusões que lhes agradavam, não a realidade dos fatos que os confrontavam.

 

Enfim, por essas e outras que considero o conselho a muito dado pelo historiador Carroll Quigley de fundamental importância para todos aqueles que realmente desejam ter uma compreensão minimamente clara a respeito da realidade, para não sermos iludidos e terminarmos feito as criancinhas que foram arrastadas, sabe-se Deus pra onde, pelo malandro encantamento do Flautista de Hamelin.

 

Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela

https://sites.google.com/view/zanela

 

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