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DA VERGONHA AO TERROR


O ESCRITOR ISRAELENSE Amos Oz, certa feita, quando tinha sido perguntado sobre os procedimentos que adota para escrever, disse que mantém em sua mesa duas canetas. Uma azul e outra preta. A azul ele utiliza quando quer escrever algo agradável e a preta para xingar o governo. Ou seria o contrário? Bem, imagino que a ordem das canetas, nesse caso, não altera a escrevinhada. De mais a mais, não é disso, exatamente, que pretendo escrevinhar. Ou seria? Não sei. Vamos ver.

 

O “X” da questão, no ato de escrevinhar qualquer coisinha para que outras pessoas possam deitar suas vistas, não é, em meu ver, o impulso para bajular ou a inclinação para insultar. Pode parecer estranho o que afirmo, mas, como reza o dito popular, a malícia não está tanto na boca, ou na pena, mas sim e principalmente, no ouvido e, nesse caso, no zóio de quem lê.

 

Em se falando nisso, ocorre-me o que fora declarado, há muitas primaveras, pelo escritor goiano José J. Veiga, sobre seus livros. Segundo ele, suas obras eram escritas com o intento de desassossegar. Incomodar ao ponto de retirar o leitor de sua zona (hum, zona?) de conforto.

 

Batata! Esse é o ponto. Desassossegar é preciso. Autoajuda não é preciso. A auto justificação ideológica - que não passa de um tipo vulgar de autoajuda – também é dispensável.

 

Se pensarmos o ato de ler através da linha de raciocínio indicada pelo autor do livro “Os Cavalinhos de Platiplanto”, uma escrevinhada deveria então servir para abalar os alicerces de nosso comodismo cognitivo e, consequentemente, existencial.

 

Todos nós, cada um ao seu modo, tem lá os seus cômodos alicerces, suas referências, comodamente acolhidas numa certa época da vida, que nos permitem interpretar toda e qualquer coisa com meia dúzia de cacoetes mentais que, por sua vez, acabam nos dando aquela sensação única de que estamos montados na tal da razão, apesar de não termos colocado as suas luzes em movimento. E, tais luzes, encontram-se, muitas vezes, imóveis e, para agitá-las, seria necessário um ato de vontade macanuda para banir o sossego e, para tanto, na maioria dos casos, seria preciso uma provocação externa.

 

Minha Nossa Senhora! Agora complicou o meio de campo.

 

Calma! Calma! Não criemos pânico! Para melhor ilustrar o que estou tentando chamar a atenção, permitam-me fazer uma confissão. Uma confissão um tanto vergonhosa, mas, creio eu, esclarecedora.

 

Em meados da década de noventa do milénio passado, iniciei a minha segunda graduação – a primeira não vingou. Bicho vadio, “sacumé”.

 

Bem, na primeira semana de aula teve toda aquela apresentação do curso, do corpo docente e blábláblá. Aquela motivação de praxe de toda graduação. Fiquei fascinado, encantado, como todo calouro e - como era uma formação em humanas - é claro que já na primeira semana, disse pra mim mesmo: “sou marxista”.

 

Veja só: o tongo não disse para si que seria um marxista, que se tornaria um, mas que já era um, porque a primeira referência, para os tontos, é a que fica.

 

Naquela ocasião não havia lido uma linha sequer do barbudo colecionador de furúnculos e já me considerava um comuninha. E por quê? Porque queria estar com toda aquela galera, ser como eles, ser aprovado e aceito por imaginar que isso tornar-me-ia mais sabido. Pelo menos, no meu imaginário juvenil, tinha a impressão de que pareceria mais sabido que os demais mortais.

 

Pois é. Após isso, fui pegar meu ônibus para retornar pro meu rancho e, logo que entrei no dito cujo, é claro que o moleque barbudinho disse faceiro da vida: “eu sou marxista” (como se alguém estivesse interessado em saber).

 

Sim, disse isso e, como Deus é bom, havia uma senhora no primeiro acento que, ao ouvir essa bobagem de minha parte, disse-me a sentença que jamais esqueci: “Que marxista o que piá? Ocê nem sabe quem é Marx”. Eu, bravinho, retruquei: “e você sabe?” Ela sabia. Mais ou menos. Mas sabia. Ela me deu uma lição brutal. Tão brutal que fiquei bem quietinho e fui pro meu canto pra matutar com o desassossego que me atropelou, cuja pancada, humildemente acolhi. Quer dizer, nem tão humilde assim. Mas acolhi. Graças a Deus.

 

Depois desse carão, obviamente, passei a estudar zelosamente o dito cujo evangelho segundo Marx e seus sequazes e, acredito que, com o tempo, acabei aprendendo algumas coisinhas sobre o assunto.

 

Dois anos depois, encontrei-me com a referida senhora e, perguntei se ela se lembrava de sua fala. Claro que não. Lembrei-a do fato e lhe agradeci. Disse-lhe o quanto aquilo foi importante para mim. Agradeci pela intranquilidade gerada em minha alma que, de certa forma, até os dias atuais, me acompanha em tudo o que faço.

 

Tal inquietude lembra-me o que fora dito pelo filósofo polonês Leszek Kolakowski, em seu livro “Horror Metafísico”. Esse nos lembra que todos nós deveríamos, de vez em quando, abrir a nossa alma para a real possibilidade de sermos uma grande farsa. Uma farsa existencial, gestada numa vida que jamais foi devidamente examinada.

 

É muito comum vermos pessoas que constroem suas carreiras (como se isso fosse todo o sentido de uma vida) sobre bases que nunca receberam o necessário e indispensável exame e, passado alguns anos, vê-se que parte de nós encontra-se umbilicalmente atrelada a um amontoado de tranqueiras ocas mimosamente chamadas de “ideias críticas” ou qualquer epíteto ideológico do gênero.

 

Talvez, o que muitas vezes nos falte, seja aquilo que de certa maneira foi sugerido a mim por essa senhora no século passado que, ao seu modo, lembra-nos as palavras de José J. Veiga, indicadas no início dessa carta, que resume-se na pergunta: onde pretendemos chegar com tudo isso? Aliás, que realmente seria esse trem que recebe tanto afeto de nossa parte? E verdade seja dita: nem todos tiveram a sorte que eu tive. Sorte ou sei lá o que. Quem sabe? Não sei.

 

Sei apenas que no seu livro “Prefácios e entrevistas”, Monteiro Lobato havia dito do seu jeitão duas coisinhas que, imagino, vão de encontro com o que procuramos apresentar até aqui. Nesse livro ele nos apresenta um causo mais ou menos assim: certa feita numa tribo de aborígenes, após a partida de uma missão europeia, ficaram esparramadas pelas redondezas inúmeras latinhas de comida vazias. Latinhas essas que a galera começou a utilizar para se enfeitar. Ostentar. E, é claro, que umas davam mais status que outras perante a patota. Ocorreram inclusive algumas pelejas para disputar certas latas, que eram consideradas mais imponentes que outras, mesmo que fossem apenas latinhas vazias.

 

Bem, após contar esse causo, o taturana conclui: esse é o problema do Brasil. Latinhas. Sim, mas nossas latinhas seriam, segundo ele, os diplomas que, já na década de quarenta (ou trinta?), em grande parte não passavam de papéis pintados de valor substancial duvidoso, ostentados por todos como um tolo símbolo de distinção, de modo similar às personagens de seu causo com suas latinhas toscas penduradas no pescoço.

 

E, de modo análogo ao que anteriormente indicamos, muitíssimas vezes criamos uma relação afetiva com ideias que absorvemos em tenra idade; noutras tantas, nos ocultamos de nossa mediocridade fundamental com um ou mais títulos ou diplomas porque simplesmente nos aterrorizamos com a possibilidade de não sermos as pessoas lindas e fofas que imaginamos ser.

 

Nos apavoramos com a ideia de sermos uma grande farsa feita por nós para nós mesmos.

 

“Ah! Esse papo bravo comigo não velho. Tenho ojeriza desse blábláblá filosófico”.

 

Tudo bem. Tudo certo. Mas lembre-se que a diferença do sábio para o tonto, segundo o filósofo colombiano Nicolás Gómez Dávila, é que o primeiro luta para não ser um idiota e, o segundo, contenta-se em apenas não parecer um e, se esse for o caso, a cor da caneta não “infroi” nem “contriboi” para o desfecho que pode ser dado por nós mesmos a nossa porca vida.

 

Fim. Hora do café.


Publicado originalmente em 25 de abril de 2018. 


Escrevinhado por Dartagnan da Silva Zanela,

https://sites.google.com/view/zanela

 

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