Nas banalidades do cotidiano, nos
pequenos encontros e desencontros da vida, se prestarmos a devida atenção e
estivermos dispostos a costurar cada um desses retalhos com a linha da boa
vontade e com a agulha sagacidade, nós iremos conseguir vislumbrar a beleza da vida
e a singularidade do seu sentido.
Para ilustrar essa afirmação, derramada
de nosso tinteiro, nos permitam apresentar um exemplo. Um exemplo aparentemente
banal, como tudo o mais que se apresenta em nossa vida, mas que transborda de
sentido e profundidade quando são devidamente reunidos em nossa
consciência.
Como todos nós sabemos, e sabemos
muito bem, Carmen Miranda, no auge de sua carreira como cantora, arrasava
corações. Na verdade, no correr de toda sua vida ela fez isso com sua presença
espirituosa, com sua personalidade encantadora e, é claro, com sua voz
maravilhosa que, com a qual, encantava as plateias que ia vê-la cantar.
Ruy Castro, que escreveu uma excelente
biografia sobre ela, conta-nos que havia, lá pelo comecinho dos anos trinta, um
cantor em início de carreira, que respondia pela alcunha de Jonjoca, que trabalhava no mesmo cassino que ela e que, como dizem, era cagado de amor por
Carmen, mas sabia que aquilo tudo não era para o seu bico.
Aí, numa dessas noites que a história
faz questão de se esquecer, mas seus protagonistas não, Carmen Miranda chegou
bem perto do rapaz e disse: “abre a boca e feche os olhos”. Sem entender nada,
ele atendeu ao pedido da diva e essa, sem aviso prévio, colocou sua língua
dentro da boca dele, dando-lhe um beijão de mais de um minuto, deixando-o,
obviamente, sem palavras e, é claro, ela estava brincando com o rapaz. Ela
sabia que ele gostava dela e resolveu lhe pregar uma peça, ou fazer um gracejo, ou um agrado;
sei lá o que se passou na cabeça dela. Sei apenas o que Ruy Castro nos contou a
respeito desse caso em seu livro “Carmen Miranda – Uma biografia”.
Parêntese: na verdade, esses
pormenores picantes sobre o beijo, Ruy Castro contou em uma palestra. No livro, ele é
mais, como direi, comedido na descrição do ocorrido. Fecha parêntese.
Depois do beijo, conta-se que muita
água rolou, muita. A vida seguiu e, com o tempo, Jonjoca largou a carreira
musical e abraçou as lutas políticas. Candidatou-se a vereador e sempre obteve
êxito nas eleições. Há quem diga que foi o beijo dado por ela, Carmen Miranda,
que deu sorte ao moço.
Os anos passaram e, como todos nós
sabemos, até mesmo as maiores estrelas um dia se apagam. Carmen Miranda foi
encontrada morta em um corredor de sua casa em Beverly Hills na manhã de 5 de
agosto de 1955. Ela morreu de um ataque cardíaco em um pequeno corredor, que
leva a seu quarto. Carmen tinha apenas 46 anos.
Seu corpo foi velado na Câmara
Municipal do Rio de Janeiro e, no momento da despedida, alguém tinha que dar a
ordem para que o caixão fosse fechado para que o cortejo fosse realizado até o
cemitério São João Batista. Após a ordem ter sido dada, quem fechou o caixão,
quem viu pela última vez o rosto de Carmen Miranda, foi o vereador Jonjoca, o
apaixonado Jonjoca, que jamais se esqueceu daquele beijo que recebeu da diva
quando tinha apenas dezenove anos de idade.
Bah! Acho linda pra caramba esse
historieta, da mesma forma que considero dona Maria do Carmo Miranda da Cunha
uma grande figura humana e, diante da beleza da história dela com Jonjoca, e da
forma precipitada que a luz de sua personalidade deixou de alumiar os olhos de
muitos, penso que não temos como não meditar sobre a brevidade da vida. Sobre a
brevidade e a precariedade da existência humana.
Todos nós, cada um no seu quadrado,
traça seus planos e organiza os seus trabalhos e os seus dias para procurar
realizar tudo aquilo que tanto almejamos e aí, eis que vem a roda-viva que,
feito um tornado a bailar ao som de “A cavalgada das Valquírias”, de Richard
Wagner, carrega tudo pra lá, para outra direção que não estava em nossos
planos.
Esquecemos e, ao que parece, fazemos
questão de não nos lembrar, que nossos dias neste mundo são passageiros e que,
por mais que queiramos, não temos o menor controle sobre esse fato: de que
poderemos partir daqui a qualquer momento. Sim, esperamos que não seja em
breve, mas, graças a Deus, não sabemos nem quando, nem como será a nossa
passagem.
Por isso, como cantava a velha e amada
banda [Legião Urbana], que marcou minha porca juventude, é preciso, sim, amar
as pessoas como se não houvesse amanhã, porque na verdade não há amanhã. O que
temos somente é o agora e a hora da nossa morte. O agora e a hora da nossa morte, conforme nos lembra a oração da Ave Maria quando a recitamos.
A respeito de nossa hora fatal nada
sabemos e, mesmo que soubéssemos, não poderíamos fazer nada a respeito. Nada
mesmo. Porém, o agora está ao alcance de nossas mãos para fazermos com ele o
que bem quisermos, inclusive, viver nossas vidas de uma forma muito mais significativa,
como se este agora fosse o nosso último momento aqui neste mundo.
Na verdade, bem na verdade mesmo, é à
luz da hora fatal que nossas vidas se veem preenchidas de sentido, pois como
nos ensinam os grandes sábios e santos de todos os tempos, e de todos os
cantos, é apenas quando aprendemos a meditar diariamente a respeito da
inevitabilidade da morte que nós aprendemos realmente a viver, porque é apenas
diante da fragilidade da vida, da nossa precariedade existencial, que nós
realmente aprendemos o real significado do amor e do perdão.
Fim.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva
Zanela
https://sites.google.com/view/zanela
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Amei este texto.
ResponderExcluirSó li verdades!! Parabéns pela bela construção desse texto Dartagnan!!
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