Há uma velha historieta que nos conta
que um senhor havia despertado depois de muito tempo de um sono profundo – ao
estilo Bela Adormecida, mas sem beijo, nem príncipe – e que, ao ver o mundo
contemporâneo, sentiu-se aturdido e, então, procurava algum canto onde ele
poderia se sentir em casa. Foi até o Parlamento e esse havia mudado. Foi à
praça da cidade e essa, também, havia mudado. Resolveu ir então até a Igreja
mais próxima, mas essa também não era mais a mesma. O senhor foi para todos os
cantos, todos, e tudo havia mudado. Então, num ato de desespero, ele resolveu
ir até a escola e, ao chegar lá, seu coração ficou tranquilo, porque a escola
continuava sendo do mesmo jeito que era no seu tempo, que a muito havia
passado.
Uma historieta bonitinha, engraçadinha,
sim, mas tremendamente ordinária por várias razões e, sua banalidade falaciosa,
que é capaz de engambelar muitas almas imbuídas de boa vontade, nos revela
alguns pontos cegos que descuram a educação contemporânea e fazem o trem da
alma humana descarrilar ladeira abaixo.
O principal deles é que, quando se
fala de um hipotético "bom sistema de ensino", a primeira coisa que
vemos muitas pessoas falarem e repetirem, de uma forma tão impensada quando
deslumbrada, é que seria muito, muito bom, que todas as escolas tivessem
boleiras de computadores conectados à internet. Não apenas isso. Mas que também
tivéssemos equipamentos multimídia em todas as salas - data show, filmadoras,
lousa digital e tudo o mais que possamos imaginar – e, porque não, que cada aluno
tivesse em mãos um tablet para realizar as suas lições de maneira modernosa.
Muito bem, tais ferramentas são
realmente boas, muito interessantes, mas elas não são, de jeito maneira, a
coluna basilar de um bom processo de ensino. Nunca foi e nunca será. Porém,
como a grande maioria das pessoas na sociedade contemporânea cultiva um certo
fetiche pelas quinquilharias eletrônicas e, principalmente, tem seus corações
distorcidos por toda ordem de critérios e valores de ordem materialista e
hedonista, é mais do que compreensível que elas julguem que a presença destes
brinquedinhos, dentro de espaço escolar, seria praticamente uma garantia de que
a educação ganharia um upgrade sem igual.
Aliás, esse tipo de crendice tem
norteado as ações de inúmeros burocratas, e figuras politicamente apadrinhadas,
que têm em suas mãos a responsabilidade por traçar os parâmetros que irão
formar a vida de inúmeros mancebos.
É tanta, tanta ênfase que se dá aos
meios [moderninhos], que se esquece totalmente da finalidade primeira da dita
cuja da educação. Não apenas isso. Esquece-se de indagar se os tais meios
[hitec], que são incensados por muitos, realmente atendem de forma satisfatória
aos pré-requisitos da finalidade primeira da educação. Finalidade esta que,
infelizmente, é sumamente desdenhada.
José Osvaldo de Meira Penna, em seu
clássico “Em berço Esplêndido”, nos chama a atenção para essa “persona”, para
essa máscara coletiva junguiana, que se manifesta na forma de uma espécie de
idolatria à uma fachada moderna que encobre as contradições que imperam em
nosso país. Não é de hoje que sofremos dessa moléstia e, não será semana que
vem que iremos nos curar dela.
Tão vidrados ficamos diante dessa
imagem moderninha que se faz da “educação”, que pouca atenção damos aos
incontáveis entraves burocráticos, fantasiados e justificados com as mais
“ousadas” teorias educacionais, que não apenas procuram impedir, mas perverter,
dos pés à cabeça, toda e qualquer relação de ensino e aprendizagem minimamente
edificante.
Como podemos ter a realização do
processo educativo se a correção não pode ser realizada? Como podemos parlar em
educação quando a correção é feita e, logo em seguida, é deslegitimada? Ora,
ora, cara pálida, quando uma reprovação é transubstanciada numa aprovação, por
meio de um sortilégio burocrático, que quer porque quer um quadro estatístico
mágico, feito uma “pedra filosofal”, para apresentar aos quatro ventos
midiáticos, o que está sendo dito, nas tais entrelinhas, é que todas as
correções feitas generosamente pelos professores seriam ilegítimas e, ao fazer
isso, burocratas, políticos e doutos acabam fazendo, sem a menor cerimônia, um
baita desfavor para a educação, um tremendo malbarato para a formação da
personalidade e bem como para construção do caráter das tenras gerações.
Sorrateiramente, através de eufemismos
mil, o que se diz o tempo todo, por meio dos mais variados canais, é que o erro
não é um erro, mas apenas uma singela tentativa de acerto mal compreendida e, por
isso, não pode ser corrigido, porque fazer isso seria um ato discriminatório. E
se é para fazer valer esse tipo de malabarismo burocrático, linguístico e
estatístico, que diferença faz se ele é feito com um data show ou apenas com
lousa e giz?
Aliás, paremos um cadinho e matutemos
um pouco no seguinte: quando se procura dar uma ênfase desmedida a
espetacularização que pode ser propiciada por meia-dúzia de equipamentos
eletrônicos, que mais distraem e dispersam do que concentram e disciplinam, ao
mesmo tempo que, por meio de subterfúgios burocráticos e pedagógicos, impede-se
que uma correção seja efetivamente realizada, pergunto: o que nós estamos
fazendo com a personalidade dos nossos infantes e mancebos? Que marcas estamos
imprimindo no caráter das tenras gerações? Pois é. Foi o que eu pensei.
Mal o ano começou e muitos alunos já
afirmam, sem a menor dúvida, de que ao final do ano, aconteça o que acontecer,
as bênçãos estatais irão aprová-los, pouco importando o que eles tenham feito,
ou deixado de fazer no correr de todo o ano letivo. É triste, mas a malandragem
se aprende rapidinho e se irradia com uma velocidade muito maior do que o passo
da verdade e, ao que tudo indica, os responsáveis por essa tragédia dantesca,
não apenas não pretendem reverter esse quadro surreal como, também, não dão o
menor sinal de que irão assumir a sua baita cota de responsabilidade diante
desse cenário despido de qualquer esperança.
Por essas e outras que aquela
historieta, apresentada com grossas pinceladas no começo dessa missiva, é
barbaramente ordinária. Se tem uma coisa que mudou radicalmente no mundo
contemporâneo foi essa tal de educação. E ela não foi apenas mudada para pior.
Não. Ela foi transformada por doutos, políticos, apadrinhados e burocratas, em
outra coisa que, em muitíssimos aspectos, é o contrário da educação.
Escrevinhado por Dartagnan da Silva
Zanela
https://linktr.ee/dartagnanzanela
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